the untitled tale
1º CASO
Havia uma rapariga, cujo nome ninguém sabia.
Era uma rapariga como qualquer outra, provavelmente tinha um nome banal como outras tantas como ela, um nome próprio bastante comum - uma rapariguita qualquer.
Nem muito alta, nem muito gorda.
Nem feia, nem bonita.
Não era ruiva nem morena.
A única coisa diferente que essa rapariga tinha, agora me lembro, eram os olhos. Que olhos!
Eram uns olhos diferentes.
Maiores.
Mais luminosos, mais da cor do sol que outra coisa que exista na terra.
Eram daquela cor que só conseguimos encontrar quando o sol se põe bem lá depois das ultimas nuvens, bem lá depois da última gota de mar que vemos no horizonte.
Ninguém sabia que essa rapariga existia.
Tal como ninguém sabe que muitas outras raparigas existem, mas esta era ainda mais especial nesse sentido, porque não tinha família alguma e também não se lhe conheciam amigos, e ao que parece, as pessoas tinham tendencia para se esquer com terrível facilidade que ela existia.
O senhor da mercearia nunca se lembrava dela, embora a visse todos os dias a comprar o habitual - uma maçã verde e outra vermelha.
Os vizinhos esqueciam-se quase sempre dela, julgavam até que a casa não estava ocupada, havendo muitas confusões associadas.
Era como se esta rapariga não existisse para ninguém se não para ela mesma.
2º CASO
Aquele palhaço, estranho o Palhaço.
Ele tinha sido um dos maiores artistas circenses de que há memória. Os seus truques alegres eram a maravilha de tanta gente, a sua roupa surreal de belos losangulos, as suas histórias sempre tão reais, os seus improvisos, a sua exagerada teatralidade, a sua comoção, o seu sofrimento ensaiado, a sua entrega ao público... "um génio", diziam-lhe.
Toda a gente o queria ver. Os bilhetes esgotavam-se numa questão de horas, e era amado por muitos por este mundo fora.
Com o passar do tempo, no entanto, tornou-se mais soturno, as suas histórias mais reais, mais próximas daqueles que o iam ver, que o iam ouvir. Tão próximas, que muitos se comoviam ao ver as suas vidas representadas num tapete de lona, numa tenda suja de circo.
Aquele palhaço, estranho o Palhaço.
Um que sabe com detalhe a vida de cada um de nós. Um Palhaço que nos observa e representa na perfeição - todos os nossos movimentos, os nossos tiques, que mima detalhadamente os nossos maiores medos, as nossas tristezas mais tristes. Não tardou a ser despedido e por muitos esquecido.
Aquele palhaço, estranho Palhaço aquele.
Desolado, só e mal amado, deu por si numa rua escura a representar para o passeio.
O seu chapéu, outrora lustroso, está agora na laje fria esperando as caricias de algumas moedas atiradas a medo e à distância, uma moeda que lhe pede silêncio.
Conta ainda histórias que são demasiado parecidas com a minha e com a tua vida, e todos lhe fogem, todos tentam não escutar da sua boca a história da vida que não queremos ter.
1º CASO + 2º CASO = 3º CASO
Um dia, sem qualquer aviso, sem ninguém prever que tal fosse acontecer, essa rapariga cruzou-se com esse Palhaço, em mais um daqueles estranhos eventos a que podemos apelidar de coincidência.
"Para onde ia ela?", é a pergunta sem resposta que muitos fazem. Na realidade ninguém sabe ao certo, e poucos se lembram de a ver nesse dia.
O que é certo é que ela seguiu por ruas que desconhecia. Coisa que jamais fazia, não fosse ela também esquecer-se de si e do pouco que sabia da sua vida. Mas aquele dia pedia mudanças extremas na rotina, e ela cedeu a esse ímpeto infantil - contrariar aquilo que lhe parecia certo.
E tudo aconteceu da seguinte forma...
Era o seu dia de folga, de um trabalho que talvez nem exista neste mundo. Era Outono. E sem saber explicar porquê, as folhas coloridas agradavam-lhe bastante. Pareciam acenar-lhe muitas "boas-vindas" lá do alto.
Depois de regar com atenção os seus 9 "vazinhos", com a mais estranha variedade de plantas que se possa imaginar, saiu de casa em direcção à mercearia, onde mais uma vez comprou as habituais maçãs e se apresentou, mas sem grandes explicações como fazia de costume, hoje o dia apressava-a para outras ruas, e não havia tempo.
Decidiu andar a pé. Deixaria os túneis do metro para dias mais banais que aquele, parecia-lhe bem assim. As árvores atiravam belas folhas carmim à sua passagem, os pombos, irrequietos faziam danças nos seus pés e os sem abrigo cumprimentavam-na ao longe com um breve movimento de cabeça. Tudo lhe parecia estranho naquele dia.
Talvez fosse a luz, mais amarela que o costume, talvez a presença das pessoas na rua.
Pessoas de caminhar apressado, de olhar vazio que se desviava das árvores, pessoas de mãos frias que empurravam levemente quem caminhava devagar.
Parecia que poucos a conseguiam ver. Talvez, somente aqueles que tinham tempo.
Andou o dia todo.
Perdeu-se por muitas ruas encontrando-se noutras que nunca tinha visto.
O sol começava a pôr-se quando decidiu parar um pouco.
Parou num banco de jardim. Um jardim pequeno, daqueles redondos, daqueles que ninguém sabe para que serve e que "mais valia ser transformado em rotunda" (alguns comentam).
Um jardim tão pequeno que tinha apenas quatro bancos, uma grande árvore no meio e uma estátua (daquelas estátuas de alguém de quem ninguém se lembra, com uma chapa em bronze com um punhado de palavras gravadas).
Comeu a maçã verde. Observou com detalhe o céu, as casas à volta, a árvore, a estátua que era afinal de uma poeta já falecida, e cujo poema dizia assim:
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...
E foi então que o viu - O Palhaço. Lá longe, ao fundo da rua da esquerda.
De pé. Gesticulando e pulando para as pessoas que passavam.
Parecia contar histórias. Parecia que ninguém o queria escutar.
Parecia que como ela, não existia.
Ao vê-la aproximar-se ele baixou os braços e ficou em silencio.
Olhou-a demoradamente até ela estar próxima o suficiente para lhe ver os olhos cor de sol.
Ela sorri-lhe e pergunta-lhe.
«que tipo de espectáculo fazes tu?»
«eu conto a história sobre a vida de cada pessoa que vejo.»
«verdade? como fazes isso?»
«não sei explicar, nem eu entendo bem.
mas não é importante, não há quem queira escutar-me...»
«sabes a história de toda a gente?»
«toda»
«podes contar-me a minha?»
De dentro do seu saco retira uma maçã vermelha que estende na direcção do Palhaço.
«gostava que me contasses a minha história
mas não tenho moedas. Se aceitares esta maçã...?»
Ele aceita. Segurando com força naquela maçã que ele tanto ansiava. Pega no seu chapéu gasto e leve, coloca-o na cabeça, oferece-lhe o braço com uma grande vénia "mímica".
«sentemo-nos»
Sugeriu.
Voltaram ao jardim, agora de candeeiros acesos. Deu a primeira trinca na maçã e começou.
Voltaram ao jardim, agora de candeeiros acesos. Deu a primeira trinca na maçã e começou.
«Um dia, sem qualquer aviso, sem ninguém prever que tal fosse acontecer,
encontraste um Palhaço, em mais um daqueles estranhos eventos
a que podemos apelidar de coincidência.
"Para onde ia ela?", é a pergunta sem resposta que muitos fazem.
Na realidade ninguém sabe ao certo, e poucos se lembram de te ver nesse dia...»
Depois daquele estranho dia, poucos são os que se lembram daquele palhaço que costumava estar na rua da esquerda com um velho chapéu no chão. Menos são os que se recordam da rapariga. Diz-se que andam por aí, apanhando folhas do ar, saltitando, sorrindo, vivendo as pequenas coisas, atrasando os que querem andar depressa para lugar nenhum.
Diz-se que vão mudando aos poucos a vida das pessoas que se recordam deles ou da história do palhaço, que aceitou a maçã vermelha de uma menina, que até esse momento, nunca tinha existido.
FIM
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