a história de uma rapariga fútil que não tinha vestidos
hoje eu queria comprar um vestido. não comprei, alguém se adiantou e quando olhei ele já não estava lá. eu queria muito aquele vestido. aliás, eu queria um vestido qualquer, mas alguém levou todos os vestidos do mundo para casa e agora... agora eu tenho de fazer uma viagem ao outro lado do mundo só para comprar a M*RD* de um vestido para ficar contente.
Contente?
Crap...
Memórias de um vestido verde.
Tenho saudades tuas.
Daquelas que não se poderão explicar jamais por serem tão estranhas.
E eu sou pequena e não sei bem o que é isso de saudade, mas dizem que é sentir falta, relembrar e sorrir. Tenho saudades tuas. Dantes, eu guardava-me dentro de um guarda-fatos pequenino com uns puxadores muito redondos, sabes, foram feitos para tu os abrires quando quisesses, mas tu nunca quiseste e agora eu já não respiro, morri fechada dentro desse armário que criei só para ti. Porque gostava de ti.
Ainda gosto, mas agora já não respiro, tiraram-me de dentro desse armário e colocaram-me dentro de uma caixa de cartão cheia de outras coisas minhas. Olha, até as cartas que não te escrevi estão aqui. Os sorrisos e as mãos que te queria dar.
Gostava de mãos, sabias? Dos dedos entrelaçados, do silêncio.
Às vezes ainda sonho contigo. Sorris para mim, damos as mãos e vamos descalços com os pés bem húmidos sobre uma relva tão branca tão branca que parece feita do céu, sabes, daquele céu que agora quase que não me lembro, aquele, aquele muito céu!?
Penso em ti, e sei que estou longe, quem sabe a navegar em direcção ao continente Africano para servir de alento aos refugiados, aos que não têm nada.
Eu agora também tenho muito pouco. Só algumas cartas e esta caixa. Começo a gostar. Sinto o cheiro a água salgada e a terra molhada, devo estar a chegar a qualquer lugar.
Mas penso muito nesse armário só teu que agora ficou para trás, não sei o que foi feito dele, mas penso muito nos puxadores.
As minhas memórias têm fios que se prendem a ti. Ainda bem que não sou feita de lã, ou seria um novelo perdido tentando voltar atrás e ser aquela que te esperava, todas as noites, espreitando pelo buraco da fechadura.
Ah... como me fazes falta.
Espero que alguma menina, de cabelo encaracolado, da cor do chocolate me transforme numa boneca de trapos e me ame, como eu queria que o tivesses feito.
analogias
- Porque não sorris mais, homem?
- Sorrir pra quê? Os dentes já não me permitem essas aventuras.
- Sorrir pra quê? Os dentes já não me permitem essas aventuras.
Do lado de dentro do espelho.
"Não existes. Tudo o que existe em ti é o reflexo de outro. És eu e todos. Absorves e projectas somente aquilo que te mostram. És oco. Mentiroso. Não existes."
E foi assim que o espelho se fechou para sempre e ninguém o voltou a atravessar.
Retrato de uma princesa desconhecida
Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos
Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino
Sophia de Mello Breyner Andresen
Pre - Post Mortum Letter
"Eu quero escrever um livro".
Acordou com essa ideia tresloucada, a ideia de construir casas com palavras em vez de usar as peças azuis do lego, peças essas que haviam sido as suas favoritas desde sempre. Comprou um bloco de folhas branco e uma caneta azul, e foi sentar-se num banco de jardim à espera de se sentir inspirado. Para ele a inspiração era um acto divino, um momento de magia em que qualquer pessoa se sentiria iluminada e capaz de criar coisas fantásticas. Mal ele imaginava que também Carina, a prostituta mais famosa da casa da Gina, se sentira inspirada certa vez ao desabotoar os botões das calças do seu primeiro namorado, aos 14 anos, e que depois desse momento sentiu que havia muitas outras que gostaria de desabotoar. A vida tem muitos mistérios difíceis de desvendar, especialmente para os pais da Carina que a expulsaram de casa quando souberam que aquele novo par de jeans havia sido oferecido em troca de caricias.
Sebastião esperou naquela tarde, sentado no banco pela vontade de escrever. Para ele, era a última oportunidade de se sentir útil aos 13 anos.
O sol estava quente, as pessoas caminhavam de cá para lá, aproveitando aquele dia acolhedor.
Nada acontecia.
Desanimado, mas terrivelmente decidido, deixou no banco o seu bloco e caneta novos e dirigiu-se ao mar.
Naquele momento, Sebastião tinha somente uma vontade, enfrentar o medo da água que o acompanhava desde os 4 anos, e afogar-se no pontão norte.
Três horas depois Sebastião era dado como desaparecido. Três dias depois foi encontrado na praia, como uma garrafa de náufrago vazia.
Post Mortum Letter
Mãe, Pai
Decidi acabar com a minha vida, no momento em que percebi que os dias de sol já nada podiam fazer por mim.
O vosso filho
Sebastião
I need your love like the sunshine...
Era uma frase solta na parede de cimento que tapava a fachada da antiga tasca do Albino. Ela descia aquela rua desde que se lembra de ter reparado que o sol era uma bola lá no alto e não uma lâmpada igual à da cozinha da avó Alice.
Estava mais murcha, como uma alface nas tardes de Verão alentejano. O mundo havia-lhe roubado o punhado de sonhos que tinha, e sonhar novamente era coisa que tinha deixado de fazer, "já és uma mulherzinha, deixa-te dessas coisas". Ela não acreditava nisso, mas com o tempo pareceu-lhe que suportaria melhor o fardo de estar viva, se realmente se convencesse a si mesma que já não podia sonhar mais.
Trabalhava na retrosaria da D. Maria, pobre da senhora, viuvá e sem filhos com 6 dioptrias em cada olho, já não podia contar os botões ou ver bem os metros de fita que vendia. Contratou a rapariga mas contrariada, não gostava de ter despesas.
A rapariga, no entanto, gostava de trabalhar lá. Gostava dos armários brancos e altos, cheios de caixinhas mágicas com coisas lindíssimas de tempos que nem lembra ao diabo. Só não gostava quando a D. Maria resolvia lá passar as tardes, tinha de andar escadote acima escadote abaixo a mudar caixas, a limpar armários sem pó que a D. Maria insistia não estarem bem limpos, apesar de já quase nem conseguir ver a cor do cabelo da rapariga.
Gostava do quotidiano da loja, davam-lhe uma certa paz no coração. Tinha freguesas fixas que se iam abrindo aos poucos com ela, contando-lhe histórias da sua diminuta intimidade, da sua longínqua juventude, longínquos amores. Ela gostava de as ouvir, sentia que todas aquelas histórias agora também faziam parte dela, e se as contasse a alguém, um dia, como de as tivesse vivido de facto, não ia sentir que estava a mentir - dentro de si, a vida daquelas pessoas que a visitavam durante as tardes de Outono, era a sua própria vida.
Gostava especialmente das tardes de sábado. Fechava a retrosaria por volta da hora de almoço, vestia o seu casaco vermelho, colocava o chapéu, e descia a rua de pescoço esticado, gostava de ver tudo como se fosse aquela a primeira vez que passeava por Lisboa.
Depois fazia a sua visita habitual ao Adamastor.
Adamastor era um rapaz Italiano com compridíssimas barbas, enormes sobrancelhas e um cabelo impressionantemente emaranhado que costumava tocar guitarra junto à estátua do Adamastor, e ela, todos os sábados, depois do seu trabalho, o visitava.
Levava consigo duas cervejas que comprava pelo caminho e umas sandes que inventava de manhã.
"O que vai ser hoje?", perguntava-lhe ao vê-la descer os degraus, "Please set me free...".
E nos intervalos dos golos de cerveja trauteavam a letra, entre lágrimas e gargalhadas.
Tempos depois, já a D. Maria tinha sido enterrada no Cemitério dos Prazeres no jazigo que fora dos seus pais e avós, a rapariga desapareceu. Dentro de um pequeno envelope que encontraram, lia-se a letra de uma música escrita num guardanapo de tasca... ninguém se lembra que música era aquela, mas falava de sonhos e mundos onde se podia viajar sempre de comboio. Ao Adamastor, nunca mais ninguém o viu.
Cá para mim, ela perdeu o medo e finalmente passou o Cabo da Boa Esperança.
Aula de dança escrita
"Um dia desses vou roubar-te. Vou aparecer como no antigamente com os meus grandes sorrisos e os meus copos coloridos cheios de bebidas tropicais e vou levar-te comigo por esse mundo fora.
Um dia, quando menos esperares, estás nos meus braços, e o que te vai deixar mais surpreendido é que vais gostar."
confusões
Tenho frio, disse ela abraçando o seu fino corpo com aqueles braços compridos, tão compridos que pareciam de mais para ela.
Never mind...
Nunca mais se haveriam de beijar como naquela noite. Há coisas que acontecem numa fracção de segundo para depois serem esquecidas ou guardadas numa das muitas caixas da memória, uma imagem sem nome. Era isso que ela era. Aquela memória sem nome que aos 83 anos ele recordou ao acordar sobressaltado às 4 da manhã. Tornara-se um hábito aquele sonho, aquele sonho projectado de dentro de si, sonho que fazia parte de um pedaço de vida que lhe queria dizer alguma coisa, mas ele não se lembrava. De à dois anos para cá, esquecia-se até do nome das cores, qual das portas era a da casa de banho, o que era a vontade de fazer "chichi", o que era uma pêra. Mas aquele sonho acordava-o todas as noites, aquele beijo suspenso, aquela fotografia mental de uma mulher que ele não conseguia recordar por muita ginástica que fizesse.
Voltou a colocar um pontinho no pedaço de folha azul onde ia registando a frequência daqueles misteriosos sonhos.
Um dia, em que o sono lhe fugiu para sempre, esboçou a lápis aquele momento que tantas vezes lhe aparecia no sonho. Dois dias depois morria, vitima de uma queda enquanto tentava encontrar as escadas para o jardim, estava no 10 andar e pela primeira vez não soube o que eram as distancias.
Alice, enfermeira estagiária guardava dentro de um grande saco azul de plástico os últimos pertences do senhor Eurico quando encontrou o papel azul. Naquele momento o mundo parou de girar, algures no coração daquela rapariga cinzenta alguma coisa estranha acontecia. Por momentos, julgou rever-se a si mesma e ao seu amante, médico casado e com filhos, naquele pequeno papel azul, ela e o seu amante naquela noite em que ambos se despiram sem pudores e se fornicaram a noite inteira enquanto os velhos do asilo gemiam de dores do reumático.
Desfez o papel em bocados e guardou-o na bata.
Ainda bem que o velho morreu, suspirou.
Tarde de mais...
Só depois, enquanto limpava a pequena faca de cortar legumes, se deu conta das muitas coisas que gostava nela, eram os seus cabelos a voar ao vento o que lhe iria fazer mais falta. Quando o juiz lhe perguntou o porquê daquele acto atroz ele respondeu seguro, remexendo nas mãos a pequena boina, única recordação sobrevivente ao incêndio, que ele jamais poderia ser o homem que ela gostaria que ele fosse, e para não a matar à pancada um dia desses em que bebesse pinga a mais, ou dar-lhe algum desgosto, matando-se com a corda dos bois, resolveu degolá-la, no 13 aniversário de casamento.Eu gostava muito da minha Alzira, senhor doutor juiz, dizia, mas eu não queria mais aquela vida.
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