exercício 1 de dia 9-4-08
Foi como se um arrepio a tivesse acordado de um estado de sonolência induzida. O que tinha feito? O que iria fazer? O que esperavam que fizesse?
Era um dia enevoado, o sol cinzento atravessava com dificuldade as persianas mal fechadas. Deitada na cama pensava em tudo. Se realmente fosse possível pensar em tudo, naquele momento era o que ela estaria a fazer. Tinha-se passado muito tempo desde a última vez que ouvira a sua própria voz.
As horas não passavam de números amorfos que pingavam do relógio, e como muitas coisas antes dessa, a noção do tempo também já não tinha grande importância.
O piano começou a tocar, era a única coisa que ainda a fazia sorrir, as aulas de piano no apartamento ao lado. Muitas vezes se esqueciam que ali vivia uma senhora sozinha. Uma senhora de cabelos brancos e sorriso gigante. Não a tinham visto muitas vezes nos últimos tempos, mas ninguém se preocupava muito pois achavam que eram excentricidades dos oitenta. O isolamento, o afastamento social.
Houve quem dissesse que na última semana da sua vida, aquela que precedeu ao arrombamento da porta da entrada, a ouviam cantar músicas em francês, dizem que ela viveu muitos anos em França, os melhores da sua vida, dizem. Talvez por isso cantasse dias antes de morrer. O que eles não sabem, é que ela o fazia para afastar o medo que tinha de estar sozinha.
Foi como se um arrepio a tivesse acordado de um estado de sonolência induzida por ela própria. O que tinha feito? O que iria fazer? O que esperavam que fizesse? A rapariga que vivia no mesmo prédio nutria um carinho especial por aquela senhora de cabelo platina. Também ela haveria de morrer um dia, mas naquela tarde, apesar das nuvens cinzentas, tirou as sandálias e desceu a rua em direcção à areia dourada.
Nunca mais, pensou, vou esperar por momentos assim.
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