carta

É noite.
Andava descalça de noite quando nos cruzamos, não sabia bem onde estava, se estava. Sentia-me longe e incrivelmente só, com as palavras do Torga na boca como se fossem minhas, e sabiam-me a verdade.
Sinto que perdi em mim a capacidade de falar. Muda. E há palavras que queria gritar, que estão suspensas. A noite chegou, e chamam-lhe "fim do dia".
 
Sim, chegou.
 
Há um cansaço dos olhos e do cérebro, um enorme desejo de negro e silêncio.
Sinto-me inquieta. Não me apetece ler, não me apetece ver ninguém, não me apetece ir a lado nenhum. Só a música me repousa, escolho-a cuidadosamente e deito-me num quarto escuro. Espero pacientemente que as imagens se dissolvam no ecran tremido das minhas pálpebras, demora algum tempo (respiro muito lentamente) mergulho na letargia e adormeço. Mas é um sono agitado, entre-cortado.
Preocupa-me não conseguir ler. O meu refugio de sempre. 
Ocorre-me a voz do Jim Morrison: «I'll always be a word man. Better than a bird man». E concordo com esse lagarto gordo que ainda vive nos sonhos suados de tantas adolescentes. Não há voos mais belos que os desenhados por palavras, nada mais fascinante. Mas agora sinto-me inundada de imagens. Agora, não consigo olhar um livro sem sentir aquele enjoo de quem salta de um barco para terra firme. As palavras bailam trocistas.
 
Não tenho sapatos.
Não falemos enquanto escrevo.
Pergunto-te:
- Vamos brincar na areia? 

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