É uma espécie de carta de mim para mim e ao mesmo tempo para os que por cá andam por mim.
Sentia a falta desta brecha na janela. É pequena. Mas serve para poder enfiar o nariz e sentir o cheiro das amoras; das amoras e não só, também aquele cheiro a pinho, que independentemente da altura do ano nos faz desmaiar em sonhos. Senti-me a fugir. Escondi-me aqui e ali e senti que ninguém sabia onde me encontrar. Uma estranha liberdade esta de não estar em lado nenhum e de não esperar nada de ninguém. Tive um sonho estranho entretanto, talvez deitada na erva seca. Sonhei que calçava uns sapatos brancos muito velhos. Tão velhos, que tinham já um remendo em tecido como se fosse um penso rápido (nunca lhe chamaram curitas?); um penso rápido a sarar as feridas dos velhos e gastos sapatos. O meu sonho tinha as cores das fotografias dos anos 80 (sim Esquimó, acho que foi contigo que realmente me apercebi dessas cores pastel e dessa fina camada amarelada que parece cobrir os azuis e de repente o céu é verde!), estava vestida de verde, ou seria um amarelo?, não sei já precisar, foi um sonho que já se dissolve lento na minha memoria.
Voltemos ao sonho: calçava uns sapatos brancos, velhos e gastos, e estava sentada numa janela. As minhas pernas nuas reflectiam o sol, que não via directamente mas sabia que estava algures do meu lado direito. Alguém me observava as pernas e era torturado pela curiosidade de saber o que é que escondia aquele remendo do meu sapato. Com o dedo desliza pela minha pele, faz a curva do meu joelho e vai descendo até ao peito do meu pé. Focalizando toda a sua atenção no remendo começa a puxa-lo com uma curiosidade hercúlea, uma vontade gigantesca de o arrancar de uma vez. Consegue por fim. Por baixo, uma pequena e inocente mancha negra vê a luz. Fico a vê-lo olhar a pequena nódoa com alegria, com prazer. Foi um sonho estranho. Porque falar nele? Porque parece-me que por vezes queremos muito ver e tocar numa qualquer coisa que nos esteja vedada… quer seja a vida de uma pessoa, um sonho ou ate um simples e patético desejo. Quase como se tivéssemos nascido com uma tendência inata que nos faz escrutinar ao ínfimo pormenor tudo o que nos rodeia… Então, então penso… penso alto também para vos fazer ouvir… penso; porque não nos deixamos deliciar com essas coisas pequenas, tão pequenas e insignificantes como a nódoa dos meus inventados sapatos brancos?
Sinto-me tonta. Deve ser do sol. Levanto-me e sacudo a erva que se agarra ao meu cabelo. Seguro nos sapatos e caminho lenta em direcção ao sol.
[título original "Primeira Carta", agosto de 2006
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