Histórias de estranhos

Sinto uma parede dentro de mim. Uma parede que não me deixa ler as coisas que tenho dentro dos lugares mais secretos.
Tento saltar, espreitar, ter só uma pequena imagem do que há do outro lado, mas não consigo ver nada. Então sinto-me como uma actriz a representar o papel de mim mesma, papel que não sei onde me leva pois nunca sei as deixas, nunca sei quem vem a seguir para representar comigo, uma improvisação gigante onde todos participam mas onde ninguém entrega aquilo que realmente tem dentro de si - o seu verdadeiro eu.
Não quero ter cortinas nem muros a tapar aquilo que está do outro lado, mesmo que seja um monstro horrível que cresceu e come bananas enquanto me espera, calmo e plácido, para uma confrontação diante do tabuleiro de xadrez onde cada um dos peões é um bocadinho de mim cortado delicadamente para caber dentro dos quadrados.
É preciso encontrar a porta secreta, encontrar a chave secreta, a escada secreta... talvez precise somente de alguém que me ajude a trepar este incrível muro que esconde jardins (jardins certamente, pois tenho para mim que os monstros gostam de flores, e beijam-nas). Sinto-me como quando tinha uns 9/10 anos. Nunca tinha andado de bicicleta. Pensava que nunca ia puder aprender, nínguém à minha volta parecia interessado em ajudar-me a ultrapassar essa lacuna da minha infância, acreditava que ia crescer com mais uma dentada nas minhas aventuras e vivências infantis. E é quando a Maria José aparece. Uma miúda pouco mais velha que eu (chamavam-na de maria rapaz, miúda de rua, desleixada, asneirenta e impertinente - sem papas na língua) e foi ela que tratou de me preencher esse vazio infantil que muitas vezes me entristecia.
Com uma pequena e velhíssima bicicleta branca, deu-me as primeiras lições - "travas aqui, inclinas "prá li" pra virar e depois pões os pés no chão se achares que vais cair" - e lá ia ela a correr atrás de mim, com aquelas mãos pequeninas a segurar a bicicleta para eu acreditar que estava a conseguir.
Lembro-me de ter tido medo, mas confiei naquelas pequenas e trémulas mãos para me ensinarem a correr vento adentro, para nunca mais me esquecer de como se faz. Talvez precise da Maria José para trepar aquele muro. Talvez precise da sua rapidez de decisão, da sua coragem destemida de enfrentar o mundo dos adultos. Preciso vencer este muro.

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