às vezes no silêncio da noite eu fico imaginando... eu tenho meus segredos e planos

(Caetano Veloso)

Finanças

Foi a folhear o obituário naquela cadeira de Instituição Pública das Finanças Nacionais, enquanto uns se embrenhavam nas filas e outros quebravam cabeças a tentar perceber qual dos "tiquets" escolher, que aquele senhor de cabelos brancos percebeu que a sua vida não era nada mais nada menos do que um conjunto de histórias banais, exactamente como o jornal que segurava entre as mãos. Umas histórias interessantes, algumas tristes, outras ridículas. Percebeu também naquele instante que um dia estaria também ali a notícia da sua morte, escarrapachada com um resumuzinho da sua vida, mas no jornal de outra pessoa. Não quis ler mais. Dobrou delicadamente o jornal e deitou-o fora, compreendeu que até ali a sua vida tinha sido, à falta de palavra melhor - miserável. Aquele jornal tinha falta de qualidade, quem o quereria ler? Saiu consternado e com a ideia de fazer algo melhor, por si, na esperança de construir um melhor obituário mas também um melhor jornal de si próprio, mais feliz, completo e verdadeiro. Assim que saiu chamaram o seu número, mas ninguém deu por nada, e tudo passou sem registo de nada de maior.

Desarrumação Mental

Não, não há explicação para a desorganização. As palavras atiradas assim pelo chão, desorganizadas e sem fazerem sentido fazem um nó na garganta. Os sentimentos, engalfinhados numa teia, discutem sem perceberem a sua ordem. E as imagens levam-me para aquela rua em direcção ao terreno da avó Luísa, O Ribeiro. E deixo-me ir, está sol, as casas de pedra em ruína fazem sombra e o alcatrão está quente. Estou descalça. A vegetação está amarela, deve ser quase Verão. Os meus olhos humedecem de emoção ao rever a paisagem que há anos não via, está tudo igual, ou então são as minhas memórias antigas de quando ali passava de bicicleta. As cerejeiras estão verdejantes, cheias de erva por baixo a abraçar-lhes o tronco. O sol beija-me a pele, parece abraçar-me com uma força carregada de saudade. Deixo-me ir naquela saudade de imagens que me inunda como uma onda do mar invejosa. Os pinheiros continuam altos e jovens como eu os deixei, e o Ribeiro canta já as suas notas de água ao dançar por entre as rochas. A minha desarrumação mental explode-me do peito.

...

Ouves-me, eu não queria escrever na primeira pessoa, queria fugir a isto, mas é-me difícil. Parece que as palavras se esgotam nos outros tempos verbais e sou encurralada com textos na primeira pessoa. Passo a vida em cafés imaginários, pessoas imaginárias, vidas que não existem e que me consomem, vozes que não se calam, textos que se escrevem no pergaminho da minha cabeça. Quando o tempo sobra para mim, neste pano sem fim dos dias, e posso ler livros de outros que como eu imaginavam vidas, penso na tortura que partilhamos, os que temos tantos dentro de nós a viver. Uma cidade inteira de homens e mulheres, que complicam, que fornicam, que se amam. Algum dia terei de organizar todos eles e escreve-los.

Linhas soltas na agulha da imaginação

Há um sentido de desalento e desorientação na tarde que se põe. O sol despede-se sem grandes expectativas de festa, vestido de um amarelo pálido para não dar nas vistas, e os barcos que repousam no mar dormitam sem vontade de ir a lugar nenhum, como se o mundo inteiro fosse um lugar explorado e esgotado sem interesse. Foi assim que a rapariga do vestido azul foi dar com ela, quando saiu de casa na esperança de um fim-de-tarde promissor, um espectáculo triste digno de um quadro de hotel barato.

Se eu tivesse outra vida



My own quiz!
If I had another life for one day!
Where? Home
When? 1932

What a difference a day makes, twenty-four little hours. Brought the sun and the flowers, where there used to be rain. My yesterday was blue, dear.
Today I'm a part of you, dear.
My lonely nights are through since you said you were mine. But now you are gone forever, dear. Maybe you are just late. Man you're always late. Skies above are again stormy... Miss that moment of bliss, that thrilling kiss... What a difference a day makes, and that difference is you.

Timidez

Há demasiados véus entre mim e ti. E apesar de te contar a verdade, estamos longe. As nossas palmas das mãos nunca se tocam por muito que nos estiquemos. Abrimos a janelas todas as noites na esperança que essa seja a noite e ela nunca chega. Quando chegará? Chegará?
As minhas canetas já não escrevem, eu não escrevo com elas e elas morrem de dia para dia - de amargura. Eu também, com demasiadas coisas na cabeça e no coração. É preciso dormir para acordar. E tu sabes que é isso que nos falta.
Abriram-se as comportas do inferno. Folhas brancas escrevem-se novamente, as canetas jorram tinta, as mãos reaprendem a escrever... estou livre dos demónios.

Se eu tivesse outra vida




My own quiz!
If I had another life for one day!
Where? New York
When? 1968

"I'll tell you the true. I used to write, I used to write letters and stuff, sometimes I even used to sign my name. I used to sleep at night before the flashing lights
settled deep in my brain but by the time we met... By the time we met
the times had already changed. So I never wrote a letter again,
I never took my true heart, I never wrote it down. So when the lights cut out
I was left standing in the wilderness downtown. Now our lives are changing fast hope that something pure can last. I'm gonna write a letter, I'm gonna sign my name like a patient on a table. Taxi!" 
And I'm gone babe, 'Cause my body is a cage you know? It keeps me from dancing all night long.



(Based on the lyrics by Arcade Fire, Picture by Vogue)
     
    (Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

empty room

Said your name, in an empty room

Said your name, in an empty room
Something I, would never do

Said your name, in an empty room
Said your name, in an empty room
Something I, would never do

I'm alone again

When I'm by myself, I can be myself
When my life is gone, but I don't know where

You were burning up, black and grey
You were burning up, black and grey
Something I, have never seen

I'm alone again

When I'm by myself, I can be myself
When my life is gone, but I don't know where

 (Arcade Fire)