escrito num pacote de açucar

Gostei de te encontrar debruçado na varanda a descascar rebuçados. Tinhas as bochechas de antigamente, rosadas e infantis, aquele ar malandro, o olhar meigo... tanto tempo, quase não me lembrava de ti. Chamas-te por mim, uma, talvez duas vezes, só então te vi. Queria ter sussurrado segredos e coisas malandras, mas limitei-me a sorrir e a acenar-te. Ah, como ainda vives nas paredes do meu quarto, à noite, escondido no escuro, sussurrando palavras de amor, e eu a adormecer com sorrisos gigantes naquele calor imenso que era a nossa vida, que era o mundo. Sei que são desejos impossíveis, as memórias que restam são vagas. Saudades das noites de Verão.

Carta (parte II)

Bebi demasiado chá, não me estou a sentir muito bem, mas a carta tem de continuar para a poder colocar amanhã de manhã bem cedo no correio. Vou usar daqueles envelopes que têm o maravilhoso frame azul e vermelho! São os meus favoritos!

Percebi finalmente que quando deixamos de ter quem nos mande para cama ou quem nos obrigue a comer bróculos (obriguem-me, eu adoro!9, deixamos de ser tão activos. Preciso de uma guerra qualquer, por favor, desafiem-me num duelo de morte!

Querido amigo, sinto que estou numa história de crianças mas as coisas não parecem fazer sentido, e eu tento, acredita, tento não deixar de ver aquela linda árvore amarela lá ao fundo, sim, a amarela, mas tudo indica que ela é verde. Tudo equivale a X. E eu tenho sonhos de ruas inclinadas, bons dias, o café, o caderno com rabiscos. Às vezes não consigo falar dos meus sentimentos. Consigo mascará-los de formigas e fazê-los desfilar diante de uma manada de papa-formigas sem os bichos perceberem que ali têm um belo banquete animal... (disperso-me?)

Estou a reaprender a comunicar, é mais difícil do que eu me lembrava, é sempre mais fácil vestir-me de qualquer coisa e fingir que esta não sou eu, eu sou aquela que está esparramada em meia dúzia de linhas e que tem a vida mais fascinante alguma vez vista (sim, comeu mangas no Cambodja e...).

Aqui estou, sem o meu sofá verde, os telhados das minhas aventuras, as janelas, o rádio que tocava sem parar... Onde tenho estado eu ao longo de todo este tempo? Sentada cá atrás a ver e sem perceber estes nós que se formaram à minha volta. Tenho saudades das coisas mais simples.

Quero recuperar essa fascinação e... e viver finalmente como sempre gostei! Vou colocar esta carta dentro de um envelope e enviar-ta, perdoa-me, meu querido, querido amigo, é um esquisso amargo de quem dá os primeiros passos no caminho de regresso à estrada principal!

Não tenho um cão, nem esse cão que não tenho tem cão... e os dias não são sempre uma montanha russa com túneis secretos, às vezes os meus chinelos podem incomodar, porque são os mesmos todos os dias, mas e depois?

Quando quiseres, diz-me, e vamos desenhar esse café.
E, e fica prometido... outras cartas chegarão!

Um abraço apertado, deste lado do mundo

a tua amiga que te ama
R

Carta (parte I)

Querido amigo:

Parecem séculos desde a ultima carta, talvez tenham sido (3 anos?)... Ah, por onde começar depois de tanto tempo, é como se houvesse uma barreira de vidro entre nós e pudéssemos apenas desenhar coisas abstractas com os dedos no vidro, talvez soprar (ou é bufar?) e desenhar qualquer coisa, uma chávena de café, tu desenhas outra, era um bom começo de conversa, não achas?
Talvez não para ti, era demasiado comprometedor verem-te a desenhar uma chávena de café (será que aqueles dois andam?)...
Sinto falta destas cartas do "como estás tu? ainda não morreste, pois não?".

Não, e esta carta é para te provar que ainda aqui estou!
Aqui, na cidade dos descobrimentos e dos navios sem destino. A ouvir Amy Seeley (ah, pois, agora sou eu a mostrar-te música, bem feita!). Bem, vou redireccionar esta caneta que se perde já nas entrelinhas em vez de mergulhar nas coisas que realmente interessam. Já tenho 24 anos, é verdade, ainda ontem parecia entrar nos 16, ainda ontem parecia que eu vestia t-shirts com flores e calças à boca de sino (eu queria muito ser hippie... e tinha umas calças azuis que adorava), agora aqui estou, mais despersonalizada que nunca. A verdade é que quanto mais cresço menos sei das coisas, parece quase uma viagem ao contrário... é mesmo assim? Já não tenho o meu antigo sofá verde, onde nos deitávamos para ver as estrelas que desenhámos com as canetas de feltro no tecto, agora é um sofá qualquer que nem sei para que serve. Sinto falta de um ombro amigo para poder dizer que me quero mudar para África e viver numa palhota a cantar e a dançar com os meninos da escola.

Poder dizer isto sem levar palmadas no rabo "salva-te a ti primeiro...".

Isto de crescer é como na escola, temos de estar constantemente a mostrar a todos que somos muito fixes, "o que é que fazes? " - "limpo latrinas".
Juro que um dia me vai escapar sem querer!

Acho que sou assim, uma cabeça de vento que nunca sabe bem para que lado vai soprar nem quando! Eu quero escrever. Essa é a minha paixão, vestir-me de lobo, mas na verdade eu sou o capuchinho vermelho. Viver a vida de uma criança de cinco anos novamente. Viver a vida de um senhor de 85, como se na verdade essa fosse a minha vida.

Vender flores. Enviar ramos a desconhecidas solteiras, sorrir, malandrar com malmequeres - bem-me-queres.
No entanto preciso de mais emoções, a vida é feita delas sabes?! Correr até o coração bater tão rápido que parece que vai sair de nós e correr ainda mais depressa. Ouvir alguém tocar na rua e chorar de emoção... rir às gargalhadas!

Onde estão todas essas coisas?

(continua)

make a turn

Hoje quero ser menina. Sim, vestidos com lacinhos, baton, perfume e flores. Saudades de comprar ramos de flores e de as colocar dentro de garrafas com significados especiais. Dançar Belle & Sebastian às três horas da manhã quando já estou farta de ver televisão e me começo a sentir um bocadinho sozinha. Fazer café e beber chávenas cheias como se fosse chá. Coisas de miúda.

Cinzento escuro

Não posso salvar o mundo. Seria óptimo acordar um dia e dizer, hoje, vou salvar o mundo, não me telefonem. A verdade é que não há nada para salvar, nada para acontecer, nada para surpreender. A vida é uma sopa de dias que vamos mexendo na esperança que nos saia um dia de sol, quem sabe um dia romântico, na melhor das hipóteses um dia em que nos sai o Euromilhões e... E podemos fingir que somos felizes com estilo! Eu gostava de sopa de letras porque podia escrever as palavras que queria com a comida. Agora tenho mais dificuldade em gostar das pequenas coisas da vida. Tudo se vai tornando gradualmente mais complicado, mais cinzento... Somos escravos.

o dia um

Não sei porque ainda aqui venho - de vez enquando, certo, mas venho. Sinto-me como uma velhinha de 80 anos que guarda de baixo da cama uma caixa de sapatos com cartas secretas que esconde desde que se casou aos 20. É como escrever cartas sem destinatário que guardo, não sei para quê. Acho que é a esperança vã de encontrar alguém que leia a língua que eu falo. Bem... aqui estou para escrever qualquer coisa sobre - sobre nada, quem sabe. Escrevia sobre Lisboa para alguém que não conheço quando lhe digo que ao menos em Lisboa me encontro na cidade de onde grandes marinheiros partiram para lugares longínquos e desconhecidos, e sendo assim, esperava ser contagiada por esse espírito aventureiro e ser levada também para longe num navio pirata. Ser destemida, não haver o medo do desconhecido, levar comigo um papagaio que come bananas para todo o lado e ter uma perna de pau da qual me orgulho bastante, obrigado por perguntarem. Os primeiros dias do ano são sempre soturnos, parece que algo muda, temos sonhos e planos e lá ao fundo, nos meses que se avizinham, muitas tempestades e ilhas que não conhecemos, tribos canibais a querer comer a minha outra perna, e as saudades do nosso porto, lá longe numa Pátria da qual só nos lembramos do nome, e na memória umas imagens deslavadas de um rio. Às vezes parece mais que estou num navio sem rumo, perdido no meio do oceano, sem saber para onde ir. Bah... disparates do primeiro dia do ano.