I need your love like the sunshine...

Era uma frase solta na parede de cimento que tapava a fachada da antiga tasca do Albino. Ela descia aquela rua desde que se lembra de ter reparado que o sol era uma bola lá no alto e não uma lâmpada igual à da cozinha da avó Alice. Estava mais murcha, como uma alface nas tardes de Verão alentejano. O mundo havia-lhe roubado o punhado de sonhos que tinha, e sonhar novamente era coisa que tinha deixado de fazer, "já és uma mulherzinha, deixa-te dessas coisas". Ela não acreditava nisso, mas com o tempo pareceu-lhe que suportaria melhor o fardo de estar viva, se realmente se convencesse a si mesma que já não podia sonhar mais. Trabalhava na retrosaria da D. Maria, pobre da senhora, viuvá e sem filhos com 6 dioptrias em cada olho, já não podia contar os botões ou ver bem os metros de fita que vendia. Contratou a rapariga mas contrariada, não gostava de ter despesas. A rapariga, no entanto, gostava de trabalhar lá. Gostava dos armários brancos e altos, cheios de caixinhas mágicas com coisas lindíssimas de tempos que nem lembra ao diabo. Só não gostava quando a D. Maria resolvia lá passar as tardes, tinha de andar escadote acima escadote abaixo a mudar caixas, a limpar armários sem pó que a D. Maria insistia não estarem bem limpos, apesar de já quase nem conseguir ver a cor do cabelo da rapariga. Gostava do quotidiano da loja, davam-lhe uma certa paz no coração. Tinha freguesas fixas que se iam abrindo aos poucos com ela, contando-lhe histórias da sua diminuta intimidade, da sua longínqua juventude, longínquos amores. Ela gostava de as ouvir, sentia que todas aquelas histórias agora também faziam parte dela, e se as contasse a alguém, um dia, como de as tivesse vivido de facto, não ia sentir que estava a mentir - dentro de si, a vida daquelas pessoas que a visitavam durante as tardes de Outono, era a sua própria vida. Gostava especialmente das tardes de sábado. Fechava a retrosaria por volta da hora de almoço, vestia o seu casaco vermelho, colocava o chapéu, e descia a rua de pescoço esticado, gostava de ver tudo como se fosse aquela a primeira vez que passeava por Lisboa. Depois fazia a sua visita habitual ao Adamastor. Adamastor era um rapaz Italiano com compridíssimas barbas, enormes sobrancelhas e um cabelo impressionantemente emaranhado que costumava tocar guitarra junto à estátua do Adamastor, e ela, todos os sábados, depois do seu trabalho, o visitava. Levava consigo duas cervejas que comprava pelo caminho e umas sandes que inventava de manhã. "O que vai ser hoje?", perguntava-lhe ao vê-la descer os degraus, "Please set me free...". E nos intervalos dos golos de cerveja trauteavam a letra, entre lágrimas e gargalhadas. Tempos depois, já a D. Maria tinha sido enterrada no Cemitério dos Prazeres no jazigo que fora dos seus pais e avós, a rapariga desapareceu. Dentro de um pequeno envelope que encontraram, lia-se a letra de uma música escrita num guardanapo de tasca... ninguém se lembra que música era aquela, mas falava de sonhos e mundos onde se podia viajar sempre de comboio. Ao Adamastor, nunca mais ninguém o viu. Cá para mim, ela perdeu o medo e finalmente passou o Cabo da Boa Esperança.

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