Never mind...

Nunca mais se haveriam de beijar como naquela noite. Há coisas que acontecem numa fracção de segundo para depois serem esquecidas ou guardadas numa das muitas caixas da memória, uma imagem sem nome. Era isso que ela era. Aquela memória sem nome que aos 83 anos ele recordou ao acordar sobressaltado às 4 da manhã. Tornara-se um hábito aquele sonho, aquele sonho projectado de dentro de si, sonho que fazia parte de um pedaço de vida que lhe queria dizer alguma coisa, mas ele não se lembrava. De à dois anos para cá, esquecia-se até do nome das cores, qual das portas era a da casa de banho, o que era a vontade de fazer "chichi", o que era uma pêra. Mas aquele sonho acordava-o todas as noites, aquele beijo suspenso, aquela fotografia mental de uma mulher que ele não conseguia recordar por muita ginástica que fizesse. Voltou a colocar um pontinho no pedaço de folha azul onde ia registando a frequência daqueles misteriosos sonhos. Um dia, em que o sono lhe fugiu para sempre, esboçou a lápis aquele momento que tantas vezes lhe aparecia no sonho. Dois dias depois morria, vitima de uma queda enquanto tentava encontrar as escadas para o jardim, estava no 10 andar e pela primeira vez não soube o que eram as distancias. Alice, enfermeira estagiária guardava dentro de um grande saco azul de plástico os últimos pertences do senhor Eurico quando encontrou o papel azul. Naquele momento o mundo parou de girar, algures no coração daquela rapariga cinzenta alguma coisa estranha acontecia. Por momentos, julgou rever-se a si mesma e ao seu amante, médico casado e com filhos, naquele pequeno papel azul, ela e o seu amante naquela noite em que ambos se despiram sem pudores e se fornicaram a noite inteira enquanto os velhos do asilo gemiam de dores do reumático. Desfez o papel em bocados e guardou-o na bata. Ainda bem que o velho morreu, suspirou.

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