a rua das gavetas verdazuis

«quero dizer-te o quanto te amo... vem comigo meu amor, quero contar-te o quanto gosto de ti... de ti.» Artur, 31 anos, sonhador e tímido de nascença, vivia naquela rua desde sempre. Conhecido por todos como o filho da falecida Albertina, auxiliar de enfermagem desde os 23 anos, estimada por todos pela sua bondade sem fim, mas também pelos azares que tivera na vida, partilhados e derramados no ombro de grande parte dos moradores da rua. Artur, só desde que a mãe lhe falecera à 8 anos, por ali foi ficando, poucas as ambições e muitos os receios. Trabalha na livraria da rua, o Sr. Almeida tem um carinho especial por aquele rapaz, não fosse ele filho do seu grande amor. Viúvo e sem filhos dizem as bocas que a fortuna ficará para o órfão - o Artur - que muito amor tem pelos livros, homem de bom coração, é bem certo que o faça. A rua manteve-se igual muitos anos, mas desde que as centenárias começaram a cair como tordos muitas casas houve que ficaram para vender ou alugar, mal imaginava o Artur as reviravoltas que a morte das santinhas lhe haveriam de provocar na pacata vida de solteirão. Ela era jovem, tinha empregos incertos, desavenças com a família, e por voltas da vida ali foi parar também, nem queria acreditar na sorte que teve ao encontrar aquela casinha tão catita para alugar a um preço tão bom, a vida não está fácil, e para a Alice se manter muita era a ginástica financeira e a criatividade. Mudou-se para a antiga casa da D. Aninhas, mesmo em frente às janelas da casa herdada pelo Artur. Não tardou muito que o Artur descobrisse um novo passatempo, com as luzes apagadas e muito cuidado, passava grande parte do serão a espiar Alice. Aquela mulher causava-lhe grande curiosidade, passava as noites a ler livros, a dançar ou a pintar gavetas. Sim, perceberam bem, gavetas. Alice gostava de albergar em casa todo o tipo de mobiliário abandonado, por vezes, quando o mau estado do dito era tal, ela surripiava-lhe uma ou duas gavetas que trazia debaixo do braço para casa. Depois decorava-as com flores e cores e pendurava-as na parede. Artur habituou-se a espiá-la da janela todas as noites. Ela não sonhava na existência daquele personagem franzino, amante da leitura e de cigarros compridos. Ele, que dantes costumava ler livros de autores soviéticos, beber vinho tinto com os amigos que o visitavam com frequência, ouvir música de bandas nunca conhecidas, tertúlias inflamadas pela emoção de usar a palavra e que agora adiava esses encontros usando desculpas descabidas só para ficar a vê-la. Naquela primeira noite da loucura, Artur fechava o saco do lixo para o colocar na rua quando a ideia mais descabida lhe ocorreu. Olhou para os armários da sala e tirou uma gaveta, esvaziou-a e desceu as escadas. Ficou a espreitar pela janela. Viu-a parar junto ao seu saco do lixo e a levar a gaveta para casa. As semanas iam passando, da janela o Artur viu Alice construir a estante mais louca que poderia existir, uma parede cheia de gavetas despernadas e coloridas cheias de objectos renegados que ela ia acolhendo com paciência e amor. As semanas iam passando e a casa do Artur tornou-se num lugar caricato, todos os armários sem gavetas, todos os objectos colocados dentro de caixas de madeira da mercearia da D. Joaquina. Depois de muito adiar lá resolveu fazer as suas antigas reuniões, os amigos a entrar, as mesma perguntas sempre que abria a porta "que te aconteceu homem? roubaram-te as gavetas". Muitas piadas e desculpas feitas sobre o tema lá foi o Artur abrir a porta uma vez mais. Ali, diante da sua porta, a dois metros, Alice sorria-lhe "trouxe uma amiga desta vez, e mora mesmo aqui na rua!" disse um dos amigos de sempre. Corado, a sentir-se desfribilar lá os deixou entrar. Seis meses depois, Alice mudou-se para casa do Artur com as suas gavetas, que se mantiveram estante de parede. Alice trouxera para a vida do Artur a cor e alegria que lhe faltara durante anos. Ainda assim, Artur deixava-se ficar na soleira da porta a espreitar Alice sempre que esta se sentava a pintalgar o mundo de verde e azul.

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