A carta (viagem no tempo)

Parece mesmo que morreste. Já reparaste neste silêncio que nos separa? Já não te encontro do lado de lá do tronco da nossa árvore. Sento-me e espero por ti nessas tardes que para mim faziam sentido quando te esperava. Agora, espero-te e tu não vens. Nada faz sentido. Também abro a janela como fazia no antigamente, aquele muito antigo em que eu gostava muito de ti. Onde estás? Ainda te lembras de mim? Perdi-me de ti naquele sonho estranho em que seguias num carro grande e te afastavas cada vez mais, eu a chamar, a chamar... a mostrar-te as minhas luvas de mimo, aquelas com que eu gostava de brincar contigo, as tuas favoritas, ainda te lembras? Eram vermelhas! ...às vezes sonho contigo, ainda aí estas, mas longe, do lado de lá da velha ponte vermelha. Não é justo que tenhas ficado com os meus dedos, aqueles que eu usava para falar. Deixaste-me muda. Roubaste as histórias que eu te contava. Ficaste com tudo. Agora reparo que sempre foi assim, tu lá e eu aqui, a desenhar-te o mundo, tu nunca querias nada... e eu dava-te tudo, os meus lápis de cera, as minhas mãos e a minha boca. Dentro da esquecida mala de viagem encontrei alguns dedos e recomeço a aprender a falar. Não vais acreditar, mas o mundo afinal é redondo e podemos ir a todo o lado escorregando como num escorrega gigante. Eu quero ir a todo o lado, ver o azul e o vermelho do mundo. Eu vou levando verde, na esperança vã que te relembres dos tempos em que ainda sabias voar e nos ríamos nos intervalos dos silêncios que degustávamos no telhado da minha inexistente vizinha. Às vezes ainda espreito pela tua janela. Está sempre fechada e é escuro lá dentro. Ainda assim, espero encontrar-te um dia para te poder entregar um abraço muito pequenino que fui deixando dentro de um bolso antigo. Esta carta serve só para te dizer que eu ainda estou viva.

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