fragmento de um diário antigo II

Eu não tive muitas avós. Tudo o que me foi legado como herança foram as histórias perdidas que me iam contando, memórias esbranquiçadas pelo sol de pessoas que ainda se recordavam dessas avós de outros tempos. Aquela que mais curiosidade me deixou foi a avó Conceição. Acho que o primeiro nome era Maria. O meu pai, homem de poucas palavras e afectos, nada, ou muito pouco, me falou dela, mas todas as migalhas que consegui reunir me fazem crer que era uma mulher forte, inteligente e perspicaz. Cresceu e viveu numa época em que as mulheres pouca importância tinham no mundo (achavam os homens dessa época, tal como o meu avô Fernando, homem do campo que se casou com a Conceição ninguém sabe bem como). Não sei de onde era essa minha avó, acho que em tempos perguntei ao meu pai, mas foi uma resposta vaga, um lugar nenhum. Pressuponho que seja transmontana como toda a minha família. O sobrenome, não o sei também, os seus 7 filhos herdaram somente o Magalhães; dela, mulher magra e frágil, talvez as feições e a magreza. Nasceu no século XIX, cresceu na época áurea da evolução. Viajou em jovem, viveu no Porto, trabalhando em casa de alguns senhores importantes, penso, e viveu em Inglaterra, de onde veio a saber tocar violino e a falar Inglês, coisa que ela muito se orgulhava. Durante toda a vida disse que não se casaria com um homem simples, e um piparote do destino deixou-a casada com um homem do campo, a viver numa pequena aldeia em Trás-os-Montes, grávida do seu primeiro filho e a gerir uma pequena Venda (mercearia). Dizem que foi a idade que assustou seus pais e a quiseram despachar o mais rápido possível não fosse ela acabar solteira - desgraça. Dizem que era má, brincava malevolamente com a inocência dos que na altura pouco percebiam do mundo, sábios apenas nas épocas das colheitas e na qualidade das batatas. Envelheceu franzina, amarga e distante. Só, num mundo que não reconhecia. Era costureira, nos seus últimos anos dava aulas. Com ela também a minha mãe aprendeu essas artes das agulhas. Quando ela morreu, teria eu uns 5 anos, lembro-me de mexer na sua máquina de costura e encontrar botões pretos. Não sei se a teria amado, mulher bruxa, vestida de preto e ríspida. Mas fez crescer em mim a curiosidade que a querer explorar, desvendar quem seria essa mulher.

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