a pastora

Antes de morrer daquela forma trágica ninguém ouvira falar dela. Era uma estranha, uma rapariga comum e aborrecida que fazia o mesmo percurso todos os dias e que por acaso, num golpe de sorte, morreu da forma mais bizarra, divulgada e conhecida até então. Todos falam dela, alguns juram saber de onde ela é, outros julgam-se familiares distantes dessa miúda do campo que morreu na cidade, longe das suas maçãs e das suas cabras. O seu grande segredo era que tinha alma de pastora.

Mas disso ninguém sabia, as televisões roubam os olhos às pessoas e elas deixam de se ver umas às outras.

A pastora queria apenas passear no monte e acabou assim, na cidade, daquela forma inglória que nada condiz com a sua personalidade de fraga musgosa. "Mais valia ter caído dum muro quando era pequena" diziam sábiamente as velhas da sua aldeia qunado souberam do sucedido.

À noite, a pobre, quando se refugiava no seu pequeno quarto, sonhava com o som dos sinos das suas cabras. Fechava os olhos e gemia sons "Ei... UP!".

A pobre rapariga não gostava do mundo, só das ervas moles e do prado verde pronto a ser comido, pronto a ser digerido em leite que mais tarde mugiria para fazer o queijo da serra. Cresceu livre, com a cara suja, as roupas escuras pelo trabalho. O cajado herdou-o do seu avô Manuel que morrera quando a rapariga tinha 7 anos. Lembrava-se bem desse dia.

Estava na escola a fazer contas de multiplicar, amedrontada com o peso do olhar da professora que tanto gostava de açoitar ao mínimo erro.

A mãe bateu à porta. A professora levantou~se da sua cadeira de verga junto à salamandra que ruminava toros de oliveira e foi-lhe abrir a porta. Ouviram-se sussurros, mas ninguém se atreveu a tirar os olhos dos números que necessitavam de ser multiplicados. "Júlia", chamou a professora, e ela levantou-se e olhou para a mãe que tinha flores cor-de-laranja na mão, as mesmas que cresciam no muro do quintal da casa da família. "Júlia, o teu avô morreu". E ela lá foi, a pequena pastora tentando acompanhar os passos trémulos da mãe.

Do funeral já não tinha memória. Ela não percebia bem o que era aquela cerimónia, o avô ali deitado a dormir a sesta com toda a aldeia a rezar-lhe. "Quem me faz agora o vinho quente, mãe?", acabara-se o carinho da única figura masculina que a pequena tivera na vida.

E foi assim. A pequena Júlia deixou a escola, deixou para trás as contas de multiplicar e os rios de Portugal e agarrou-se com amor ao cajado que a mãe lhe entregara uma semana depois do funeral.

A aldeia admirava-a e as cabras obedeciam-lhe com tamanha devoção e respeito que era um gosto vê-la passar com as 100 cabeças que guardava.
Para a pequena, o prado e a guarda eram alegria para a sua alma. Livre e dona de si, percorria quilómetros sem fim para alimentar aqueles animais que a seguiam com amor de filhos pequenos. A Júlia, aos 12 anos, era como uma fraga do cabeço - grande, forte e imponente.

Cresceu a dar à luz cabritos cobertos de sangue. As mãos calejadas de mugir tetas de cabra, loira do sol, bela como as flores do campo.
Foi aos 16 que as coisas mudaram. O gado doente com a febre. O veterinário a abater os seus filhos e netos, todas as cabras que eram a sua vida. E ficaram sem nada. Uma lareira a crepitar, umas batatas na panela e o silêncio entra aquelas duas mulheres. Júlia sabia que era nas mãos dela que a vida se ganhava. Aceitou o trabalho no restaurante do Sr. Abrantes e da Dona Quinhas, haviam sido bons compradores de queijo e eram primos da mãe. E numa tarde de Outubro apanhou a carreira para Lisboa.
Trabalhava na cozinha, cortava batatas e lavava as loiças do dia. Não falava com ninguém, era calada a rapariga. Vivia num quartinho alugado a uma senhora de idade que como pagamento pedia 85€ por mês e a limpeza da casa feita a preceito, e a Júlia limpava, calada e distante.

"Agora que a rapariga morreu, coitada, que vai ser da sua mãe?" perguntam as velhas da aldeia, "Uma desgraça" dizem de dedos entrelaçados no colo. A última das suas crias e que Júlia cuidava com tanto amor, a sua mãe, quem cuidará dela? Ninguém sabe.

Ninguém sabe quem é a Júlia. Apenas veêm um corpo morto e sem vida e não sabem o que fazer com ele. Uma rapariga que morreu.
Na aldeia fazem-se os preparativos para a chegada do caixão. A Dona Quinhas agarra com carinho o braço da mãe da rapariga que com lágrimas nos olhos segura um ramo de flores cor-de-laranja, as mesmas que crescem no muro do quintal da casa de familia.

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