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Estará a acabar o tempo para criar coisas? O que impede as mentes brilhantes de produzirem? Quem as impede de criarem obras primas que serão adoradas para toda a posteridade com admiração e surpresa? Como começar? Num dia de chuva? Numa casa com lâmpadas fundidas, um lusco fusco artificial de halogéneo, cigarros que queimam nas mãos calejadas? A televisão a murmurar para a avó sentada na sua cadeira, o pai que enche sem parar copos de vinho tinto de um garrafão que pinga e deixa nódoas na toalha de Natal? Uma lareira que devora sofregamente lenha de pinheiro, que cospe fumo negro que suja as paredes e penetra nas roupas de quem vive naquela casa? Será começar no Inverno, numa aldeia que ninguém conhece onde vivem pessoas que nunca viram o mar, que vêem telenovelas e conversam na rua dentro das suas camisolas de lã borbotosas com 20 anos? Será mergulhar no silêncio e deixar a tristeza alimentar-se de rostos que dantes sorriam e riam? Será não fazer nada e deixar a chuva chover até se fartar? Será parar e deixar tudo correr?

as manhãs de Novembro são tramadas - odeio Novembro

O primeiro mês é, de todos, o mais confuso. Não percebeste ainda o significado daquela ausência e olhando para trás achas que tudo não passou de um sonho estranho. No segundo mês, as coisas acalmam e a ausência torna-se mais marcada. Os objectos pessoais estão nos mesmos lugares sem ninguém ter mexido neles e questionas-te, muitas vezes, se haverá realmente um regresso ou se aquele sonho foi real. No terceiro mês não queres falar no assunto, estás zangado com toda a gente, achas que alguém é culpado, que te mentiram, que foste enganado. Querias ter mais tempo, querias ter dito outras coisas e roubaram-te todas essas oportunidades. Questionas o sentido da vida, queres estar só, odeias tudo. Os meses seguintes são passados a ignorar esse facto, queres que te tratem com normalidade, dizes que não aconteceu nada e que está tudo bem. Um ano depois já és capaz de dizer: a minha mãe morreu.

a despedida (ou a caneta enlouquecida sobre algodão prensado)

Os irmão não se viam há dois anos. Na realidade, ainda que antes disso se vissem com regularidade, estes dois não se falavam à 18 anos. Não que estivessem zangados um com o outro, nada dessas histórias de partilhas e terrenos que acaba com espingardas a sair dos armários e a respingar tiros contra corações fracos que se quebram como galhos. Os irmãos não se falavam porque não havia nada para dizer. A vida tem dessas coisas, uns nascem com coisas para contar e aqueles dois não tinham nada para conversar - diríamos que as coisas triviais aquando da sua vivência em conjunto, não valem como reais conversas ou assuntos de importância a tratar entre pessoas - "passa-me o sal", "vou sair" eram as frases mais longas que trocavam entre si. Estes dois não percebem de amizades, pelo menos um com o outro isso não existe, são irmãos e isso deverá chegar para colmatar todas as outras lacunas existentes entre ambos. Como estava a dizer, os irmãos não se viam há dois anos. Coisas da vida levaram-nos para longe um do outro e os telefones não cumpriram a sua função de aproximar. Encontraram-se num casamento de um primo em comum (ora, são irmãos), trocaram um breve olá e acabaram perdidos no meio das tias e dos tios. O dia passou e a festa terminou. (e assim foi, partiram e nem se despediram)

pensamento desfraldado na ponta da caneta

As pessoas são como as fogueiras. Sem cinza parece que o fogo não arde da mesma forma. Sem histórias, parece que as pessoas não brilham da mesma maneira.

Querido Diário

Só para que saibas, são seis e quarente e quatro da tarde. Não tomei banho, não lavei os dentes, não me penteei. Bebi café e fui passear em Sintra. Falei mal de Deus e vi o pôr do sol. Para que saibas, sinto-me mais alegre. Querido diário, não quero escrever-te sobre coisas filosóficas, não quero dialogar sobre os propósitos da vida, não quero sequer citar grandes escritores, prefiro ser honesta e dizer-te que todas as minhas ideias fedem a merda, sou estúpida e andei a enganar-te este tempo todo. Para que saibas, penso suicidar-me, não quero mais viver esta vida do faz de conta, é muito cansativo... querido diário... querido.

Querido Diário

Só para que saibas, hoje é dia 21 de Novembro, está a chover e são quatro e cinquenta e seis da tarde. Fumei um cigarro e comi bolachas de chocolate. Não me penteei, mas hoje lavei os dentes. Para que saibas, hoje chorei. Um dia mudo-me para um apartamento T1 e vou trabalhar para a Fnac. Querido Diário, não te preocupes comigo, hoje é só um dia esquisito.

FUMAR MATA

Há muitas pessoas com vontade de morrer.

lembranças de um primo

Naquele tempo havia respeito. Os filhos eram obedientes. Os pais não precisavam de dar carinho aos filhos, isso só os estragava. Foi por isso que em Misquel um rapaz bom, que respeitava o pai e obedecia, se enforcou na loja onde as vacas leiteiras dormiam. O rapaz, aluno exemplar, trabalhador, que ajudava pai e mãe nas lides agrícolas,que cuidava com amor os animais da casa, tirou naquele dia negativa no teste da escola. Com medo, com respeito, preferiu morrer a ter que contar ao pai.

exercício

O pai matou a mãe. Os filhos não gostam de falar nisso e assim sendo emigraram para França. O pai, sozinho na casa que mandou caiar de azul, faz esparguete com salsichas. A mãe, dizem, bebeu leite com veneno. A vizinha, quando a encontrou a espumar-se, deu-lhe azeite a beber para ver se ainda lhe valia. Mas a mãe morreu e os filhos partiram para sempre. Hoje é somente o pai e aquela panela com esparguete a ferver.

exercício

Carlota era uma rapariga enfezada e sem piada. Os cabelos pretos, pingões, que lhe pousavam nos braços como um manto de velha,escondiam-na como um cortinado esconde os trastes de família. Os olhos, herdados do lado do pai, eram grandes e cinzentos. Descaídos, no entanto, conferindo à pobre rapariga uma ar tristeza que lhe tingiu a alma com o tempo. A boca era pálida como a de um morto, lábios finos, inertes, lábios que não sabiam certamente sorrir. Carlota era uma rapariga triste filha de pais professores. Não tinha muitos amigos, mas isso não lhe fazia falta pois ela nem sabia o que era isso de ter amigos. No Verão, quando os primos da cidade visitavam os avós, Carlota convivia com eles a contra gosto, não sabia brincar com outras crianças e acabava sempre por criar inimizades com a prima Ana, prima que odiava em segredo por ser a favorita da avó. Os Invernos passava-os no seu quarto a brincar com as bonecas que a avó lhe trazia de Espanha, eram todas de um plástico barato e tinham mãos grandes com dedos abertos que arranhavam, a única coisa que faziam era abrir os olhos e fechar. Ainda assim ela mantinha-as bem arrumadas por tamanho e cor de cabelo, não lhe agradava a desarrumação, tudo tinha de ser ordenado. Diziam os pais, quando os primos lá passavam, que Carlota seria no futuro uma excelente bibliotecária, quem sabe trabalhasse num importante arquivo algures a catalogar processos. Carlota suspirava, sabia lá o que os pais queriam dizer com aquilo, ela somente desejava viver na aldeia para sempre, a confusão de gente deixavam-na triste e só. Os pais de Carlota eram gente estranha. Tratados com diligencias especiais pelo povo da aldeia por serem os Sr. Professores, mas ainda assim, apesar dos títulos de senhores de bem, eram de mente curta. Evitavam o convívio e o isolamento daquela aldeia transmontana dava-lhes uma certa paz de espírito - a paz de não terem de se esforçar muito e de poderem viver uma vida calma, onde a actividade mais excitante que praticavam era a ida à pastelaria, aos domingos, comprar uns bolinhos para o lanche e beber um café na mesa de sempre. Carlota era uma criança diferente. Vivia naquela solidão de ser a única com bonecas de plástico.

Eu faria um filme a preto e branco...

e depois, se eu pudesse, comprava um projector para ficar a noite inteira a ver as folhas abanar com o vento.

um dia dentro do meu cinzeiro

Há um frio que não sei de onde vem que mata as coisas. Vão morrendo as coisas. Não sei onde isto vai parar.

bom dia

Acordei ao som do amolador de facas.