a carta que ela nunca enviou - eu e tu


Era mais um fim de tarde depois de mais um dia de trabalho como tantos outros. Nada augurava nada de diferente naquele pôr do sol deslavado em tons de malva. O percurso para casa foi o de sempre - a rua da escola primária depois as traseiras do Casino e por fim a rua do Hotel Saboia. No entanto como todos sabemos, deixemo-nos de rodeios, algo iria ser diferente naquele fim de tarde igual a tantos, tantos outros.
Aguardava-a, na caixa do correio, uma carta.
Carta essa que ela não esperava receber.

Sentou-se no sofá segurando-a entre os dedos, ainda incrédulos, estudando o papel, lendo as letras minúsculas do selo, observando todos os detalhes do envelope, tentando perceber como seria possível aquela carta estar ali, apesar de tudo, aquela carta chegou.
A sua cabeça não parava, eram tantas as emoções, os sentimentos atropelavam-se uns aos outros para terem o seu momento na ribalta do coração. Pousou o envelope. Tinha de ponderar o que aquela carta significava. Se a abrisse, toda a sua vida poderia mudar para sempre. Estaria preparada? Estaria preparada para todas as coisas que havia para dizer? Tantos anos... tantas distâncias, tantas vidas que as separavam, seria possivel combater isso, seria possivel voltar atrás? Estariam ainda a tempo?
Fechou os olhos.


"Minha querida
Queria poder dizer que te vou visitar em breve, mas a verdade é que não sei quando o vou poder fazer. Por enquanto estou a tentar montar o puzzle em que a minha vida se transformou, e olha que é um daqueles bem complicado, com peças muito pequeninas. 
Não digas que estás triste e com medo. E os teus medos são patetas? Todos os medos são patetas, os medos são apenas medos, não os devemos levar a sério de mais. Devemos apenas enfrentá-los, por vezes até convidá-los para um chá e ter uma conversa com eles, mostrar-lhes que as nossas vidas são fantásticas, olha para ti: tens uma família linda, uma casa espectacular (com espaço para fazeres uns 100 piqueniques diferentes, sim, se calhar deveriam experimentar fazer coisas diferentes com o jardim, não ter medo!), tens tudo o que sonhaste quando eras pequenina. E se a casa que tens agora não é exactamente como a dos teus sonhos, pensa bem, não seria complicado ter um castelo? Por vezes a tristeza que sentimos por não termos as coisas que não temos, quer seja a casa dos nossos sonhos, quer seja o amor dos nossos sonhos, quer seja outra coisa qualquer... por vezes essa tristeza é apenas a insegurança e o medo que aquilo que temos não chegue. Mas olha bem? Achas que não chega? Tens pessoas que gostam de ti, que se preocupam, que estão aí quando precisas (ainda que digam pouco). Essa é a tua casa de sonho. Tu és a tua casa. Isso é o mais importante de tudo.
Minha querida, eu sei que nem sempre falámos desta maneira, ainda por cima agora, que os nossos barcos vão navegando rumo a continentes diferentes, mas vamos a tempo de mudar tudo! Vamos a tempo de inverter essa distância. Espero que me escrevas em breve, tenho imensas saudades tuas.
Com amor...
RM"


Saiu de casa. O fim de tarde afinal não seria igual aos outros, como ficámos a saber. O envelope permaneceu em cima da mesa durante alguns meses sem ser aberto. Ela nunca soube o que estava escrito dentro dele, mas no seu coração a resposta tinha sido enviada.
(dentro do envelope estava uma carta do Centro de Saúde reencaminhada para a sua nova morada)

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