Mónica fumava, cigarro atrás de cigarro nos intervalos dos almoços da gentalha feliz. Fumava para não pensar mais naqueles rios que lhe banhavam os pés. Fumava os seus desamores de menina, os sonhos que perdera, as inimizades que criara por ser amarga como as uvas selvagens que nem para o vinho as querem por serem azedas. Enquanto fumava os seus cigarros, dava espaço a que as memórias invadissem o presente, deixava que o mosto se misturasse com o cheiro a garotos e torradas, e não pensava mais nas mesas por limpar e nos clientes por atender. Deixava-se ficar solta e gingona como no tempo em que corria ladeira acima para limpar os baldes da colheita.
Crescera a saltar de linha em linha, desviando-se dos comboios que fugiam daquela terra eremita em direcção ao Porto. Adormecia embalada pelo seu cantar moribundo, o seu apito angustiante quando ali chegavam, e acordava com o badalo, de uma quase alegria, quando dali partiam. Cresceu impregnada com aquele cheiro de comboio. Estava-lhe na roupa, no cabelo e na pele.
Na pequena casa onde vivia, com a sua mãe que era padeira, podia ver dois rios distintos - o Douro e o Tua no seu abraço de amor. Mónica cresceu dividida entre aquelas duas paixões - o rio e os comboios que lhe prometiam uma viagem para um lugar melhor.
Cresceu como peixe dentro de água, como diziam as velhas da aldeia, tinha aqueles rios onde era livre, lavava neles os seus males e neles chorava muitas vezes em silêncio, abafando na sua correnteza de cabra montanhesa as lágrimas de menina sem pai. Foi ali que cresceu, naquelas casas, nascidas como juncos à beira rio, entre a terra e a água, e ela era assim também, água e terra. Cresceu habituada às lides do Douro, aos horários pouco pontuais dos seus comboios, mas para ela aquela paz pequenina chegava-lhe para aquecer o coração, tal como o pequeno forno da padaria chegava para fazer o pão para toda a gente. Para ela era assim, as coisas sentiam-se bem, era porque estavam bem. Quando cresceu apanhou o comboio, como muitos haviam feito antes dela. Arranjou um trabalho num café numa daquelas cidades estrangeiras onde não há rios nem comboios. E hoje, ainda que não o admita, fuma cigarros para espantar com o fumo as memórias velhas, para espantar com aquele fumo os comboios que lhe venham falar de um rio que se abraçava a outro num abraço eterno de amor.
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