apontamentos numa noite sem estrelas de pedra
A noite chegou e com ela os silêncios mudos do mundo inteiro para me atormentarem com o tempo. Não posso deixar. Vou cantar até adormecer. Vou cantar até as janelas se abrirem e todos os homens solteiros se debruçarem para me virem ver dançar. Vou chorar até a garganta secar e não houver lágrimas para derramar, e depois vou rir embriagada de amor, e vou dançar mais ainda, embalada pela noite que esse silêncio mudo trouxe consigo vestido. É uma loucura tudo isto, a dormência de não saber que direcção seguir com estas meias riscadas pelo tempo.
new old post . histórias de estranhos . lições do eu
Sinto uma parede dentro de mim. Uma parede que não me deixa ler as coisas que tenho dentro dos lugares mais secretos que compõem a pessoa que sou.
Tento saltar, espreitar, ter só uma pequena imagem do que há do outro lado, mas não consigo ver nada. Sinto-me como uma actriz a representar o papel de mim mesma, papel que não sei onde me leva, pois não sei as deixas de cor, não sei quem vem a seguir para representar comigo, é uma improvisação gigante onde todos participam mas onde ninguém entrega aquilo que realmente tem dentro de si - o seu verdadeiro eu.
Não quero ter cortinas nem muros a tapar aquilo que está do outro lado, mesmo que seja um monstro horrível que me espera, calmo e plácido, para uma confrontação diante do tabuleiro de xadrez onde cada um dos peões é um bocadinho de mim cortado delicadamente para caber dentro dos quadrados.
É preciso encontrar a porta secreta, encontrar a chave certa, a escada ideal. Talvez precise somente de alguém que me ajude a trepar este incrível muro que esconde jardins (jardins certamente, pois tenho para mim que os monstros gostam de flores, e beijam-nas). Sinto-me como quando tinha uns 9/10 anos. Nunca tinha andado de bicicleta. Não sabia, era um facto. Pensava que nunca ia puder aprender, ninguém à minha volta parecia interessado em ajudar-me a ultrapassar essa lacuna da minha infância, acreditava que ia crescer com mais uma dentada nas minhas vivências infantis. E é quando a Maria José aparece. Uma miúda pouco mais velha que eu (chamavam-na de Maria Rapaz, miúda de rua, desleixada, asneirenta e impertinente - "sem papas na língua" - tudo o que eu não era).
Com uma pequena e velhíssima bicicleta branca, deu-me as primeiras lições - "travas aqui, inclinas "prá li", pões os pés no chão se achares que vais cair" - e lá ia ela a correr atrás de mim, com aquelas mãos pequeninas a segurar a bicicleta para eu acreditar que estava a conseguir andar.
Lembro-me de ter tido medo, mas confiei naquelas pequenas e trémulas mãos para me ensinarem a correr vento adentro, para nunca mais me esquecer de como se faz. Talvez precise da Maria José para trepar este muro. Talvez precise da sua impertinência, da sua coragem destemida de enfrentar o mundo dos adultos. Preciso vencer este muro.
life ain't enough for you (me)
E se mudássemos tudo? E se largássemos tudo e seguíssemos uma estrada que não conhecemos, mesmo que assombrada, mesmo que abandonada?! Sabemos que há curvas fechadas, poderá até haver precipícios ou castelos em ruínas, pomares com maçãs envenenadas, mas estás antes dessa curva fechada. Se pensares nisso, de repente, já nem na estrada antes da curva estás...
(pausa)
Importa apenas onde estamos agora e o que vemos. Aqui, há só a estrada antes da curva. E antes da curva há a estrada sem curva nenhuma.
Porque será que passamos a vida inteira a tentar planear tudo e a tentar seguir estradas com linhas e traços e picotados que nem sempre sabemos de onde saíram e quem as inventou?
Peguemos num lápis, já! Quero fazer um desenho qualquer abstracto! Ah, a liberdade de inventar possibilidades... e a estrada? Ah, quando chegarmos lá saberemos!
(pausa)
Importa apenas onde estamos agora e o que vemos. Aqui, há só a estrada antes da curva. E antes da curva há a estrada sem curva nenhuma.
Porque será que passamos a vida inteira a tentar planear tudo e a tentar seguir estradas com linhas e traços e picotados que nem sempre sabemos de onde saíram e quem as inventou?
Peguemos num lápis, já! Quero fazer um desenho qualquer abstracto! Ah, a liberdade de inventar possibilidades... e a estrada? Ah, quando chegarmos lá saberemos!
Passagem das Horas
Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.
Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja uma flor ou uma ideia abstrata,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,
E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,
Porque ser inferior é diferente de ser superior,
E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.
Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caracter,
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.
Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,
Basta que ela exista para que tenha razão de ser.
Estreito ao meu peito arfante, num abraço comovido,
(No mesmo abraço comovido)
O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece,
O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria,
E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças,
O ladrão de estradas, o salteador dos mares,
O gatuno de carteiras, a sombra que espera nas vielas —
Todos são a minha amante predilecta pelo menos um momento na vida.
Beijo na boca todas as prostitutas,
Beijo sobre os olhos todos os souteneurs,
A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos
E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.
Tudo é a razão de ser da minha vida.
(...)
Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro,
E todas as cidades do mundo, rumorejam-se dentro de mim ...
Meu coração tribunal, meu coração mercado,
Meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco,
Meu coração rendez-vous de toda a humanidade,
Meu coração banco de jardim público, hospedaria,
Estalagem, calabouço número qualquer cousa
(Aqui estuvo el Manolo en vísperas de ir al patíbulo)
Meu coração clube, sala, platéia, capacho, guichet, portaló,
Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial,
Meu coração postigo,
Meu coração encomenda,
Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega,
Meu coração a margem, o lirrite, a súmula, o índice,
Eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração.
Todos os amantes beijaram-se na minh'alma,
Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim,
Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,
Atravessaram a rua, ao meu braço, todos os velhos e os doentes,
E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.
(...)
Fui para a cama com todos os sentimentos,
Fui souteneur de todas ás emoções,
Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,
Troquei olhares com todos os motivos de agir,
Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,
Febre imensa das horas!
Angústia da forja das emoções!
Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,
A cadela a uivar de noite,
O tanque da quinta a passear à roda da minha insónia,
O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,
A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,
Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,
Ó fome abstrata das coisas, cio impotente dos momentos,
Orgia intelectual de sentir a vida!
(poema incompleto, Álvaro de Campos)
Ó Fernando, tu és belo.
Sign from google
Talvez isto das imagens seja um daqueles sinais que de facto seja altura de mudar tudo... pensando nisto.
O Google+ apagou todas as imagens do meu blog . 5 anos de imagens . 710 posts
Obrigada google, foi uma surpresa deveras agradável.
Peço imensas desculpas a quem aqui passar, o blog estará "despido" durante algum tempo.
Obrigada pela compreensão
RM
Peço imensas desculpas a quem aqui passar, o blog estará "despido" durante algum tempo.
Obrigada pela compreensão
RM
Revisited
Hoje pensei em ti. Nem sempre o faço, a roda da vida distrai-nos com muitas imagens, os sons roubam-nos os pensamentos, e as filas no supermercado vão sendo maiores com o passar do tempo. Hoje pensei em ti e lembrei-me da simplicidade do Verão quando vivíamos juntas. As janelas escancaradas para a rua, a rua escancarada para nós, mostrando-nos os passos dos vizinhos que olhavam de soslaio o candeeiro do quarto. Lembrei-me das conversas, das gargalhadas e de adormecermos juntas, éramos como verdadeiras irmãs - de sangue. Havia aquela ligação que vai para lá do compreensível, havia os segredos, a partilha de sonhos e de medos. Hoje pensei em ti e esse pensamento vinha revestido de uma saudade que desconhecia. Era como se tudo tivesse acontecido há tanto tempo que a memória se desbota já, como as camisolas favoritas quando lavadas muitas vezes. Saudades tuas, Sarita.
and we put the lights on then . Baby's on fire
Brian Eno |
And I don't know why I treat you so kind
Come down and dance with me, dance with meOh accept me, don't reject me, don't forget me
(IPOP)
...
Que acabe rápido este bloqueio, pois quero escrever, escrever até apagar os dedos e não haver mais palavras no meu corpo. Escrever até se esgotarem em mim as imagens e secarem todos os sentimentos. Escrever até não existir. Que acabe rápido.
alto. esguio. Tio (R.I.P). alberto
"conta-me uma história, estou tão aborrecida, vá lá" (e depois ninguém contou nada)
Alberto.
Este nome não me sai da cabeça desde o dia em que percorrendo o meu usual caminho diário, não parava de o repetir vezes e vezes sem conta dentro da minha cabeça. Alberto. Alberto. Alberto com o "l" bem enrolado na língua. Alberto com o "r" matreiro a querer correr como um carro barulhento. Alberto. Esguio, alto, magro e suave como uma folha verde e macia que se dobra com as carícias do vento, carícias essas sem pedir autorização.
Quem será o Alberto? Terei eu um Alberto dentro de mim? Talvez ele seja músico. Espera, ele toca guitarra. Os dedos longos e finos como ramos de romã beliscam com suavidade as cordas arrepiadas e virgens, e os sons viajam no ar em aviões muito pequeninos e leves. São barquinhos de papel na imensidão marítima do tempo e espaço. Queria ter dedos assim, dedos conhecedores de notas musicais "Como está senhor Dó Menor? Dona Ré, à quanto tempo, mais verdinha hoje!".
Para mim o Ré é verde, se eu fosse "cinestésica" era verde mesmo.
Um dia ele convida-me para tomar café e eu nem vou acreditar quando ele tocar para mim na sua guitarra de algodão. O meu chapéu será azul com muitas nuvens penduradas, e no café desenho uma ovelha dourada. A música da Pantera Cor-de-Rosa será a nossa banda sonora ao entardecer...
Ai, ai... Alberrrrto!
Frigidez II
Eu queria poder cortar todas as minhas roupas e ficar nua. Ficar despida de todos os artificialismos e deixar-me observar por todos esses voiyers tétricos. Ficar na rua à mercê de todos os olhares, de todos os gostos e julgamentos.
Odiada ou amada - mas nua, verdadeira. Eu queria poder ficar zangada com as pessoas. Gritar-lhes durante horas e bater na sua carne mole de sofá. Limar as minhas unhas na parede até não ter mais dedos. Ter somente braços pintados de vermelho. Não ter seios, ter apenas homens com desejo. Não ter nada, mas ser mulher. Queria ser um livro, um livro numa banca de feira, cheio de gotas de chuva do Outono, saliva e anotações a lápis. Se me deixassem eu seria um bilhete de amor, sou parva, acredito nessas mentiras da Disney, ainda no outro dia vi a Cinderella e pelo que me pareceu - ainda é virgem. Eu queria poder escrever todas as frases soltas que se formam na minha cabeça, ainda que sem conexão umas com as outras. Eu queria poder fazer desenhos no teu corpo, escrever um livro nele, beijar-te. Abandonar-te ao frio. Aquecer-te com o meu próprio corpo mutilado. Cicatrizes do tempo, do mau tempo. Eu queria fazer imensas coisas e a verdade é que, hoje, posso fazer tudo isso.
A minha alma partiu-se como um vaso vazio. finalmente, sou nada a olhar para lá da linha.
Sim, sou eu, eu mesmo tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobresselente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.
(Álvaro de Campos)
Espécie de acessório ou sobresselente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.
(Álvaro de Campos)
todos os dias
Todos os dias agora acordo com alegria e pena.
Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava.
Tenho alegria e pena porque perco o que sonho
E posso estar na realidade onde está o que sonho.
Não sei o que hei de fazer das minhas sensações.
Não sei o que hei de ser comigo sozinho.
Quero que ela me diga qualquer cousa para eu acordar de novo.
Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava.
Tenho alegria e pena porque perco o que sonho
E posso estar na realidade onde está o que sonho.
Não sei o que hei de fazer das minhas sensações.
Não sei o que hei de ser comigo sozinho.
Quero que ela me diga qualquer cousa para eu acordar de novo.
(Alberto Caeiro)
como cabras
As memórias parecem fugir-me como as cabras selvagens. Poderiam ser cavalos selvagens que escapam velozes, mas não o são - são cabras. "Porquê cabras?", pergunta alguém curioso, afinal parece que a palavra fere susceptibilidades! Como cabras selvagens fogem pulando sobre outras memorias, comendo memórias ainda mais antigas, escondendo-se dentro de memórias mais recentes, dormitando e empurrando as lembranças mais queridas, fazendo com que toda a minha vida pareça miseravelmente impossível e confusa. Por vezes tento pastar estas memórias tresmalhadas por campos verdes e floridos, mas elas fogem pulando muros e embrenhando-se em pântanos e florestas escuras. Eu chamo-as, aceno-lhes alto com o meu cajado de pastor, mas elas correm velozes, devorando lilases e rosas. E eu fico a vê-las ao longe, fugindo-me - pois eu as amo, mesmo as que não são minhas, memórias queridas que eu quero guardar para mim, que eu quero acariciar nas noites de inverno à lareira, sorrindo por te-las novamente comigo. São selvagens, estas minhas memórias. Selvagens como as cabras que pulam nas montanhas altas, voando para lá de mim.
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