há coisas que não mudam

Teias de Aranha e Cadernos de Argola

Sentou-se no parapeito da janela como não fazia à muito. Negros pensamentos lhe pesavam na mente.
«Desiste» disse o candeeiro de rua lá do topo. 
«Não quero»
 «Vais desistir. O tempo corre lento quando mais desejamos que ele seja veloz e nos deixe enfim livres das nossas metas inúteis»
«Estou a encontrar-me»
«Isso pensas tu», disse o candeeiro.
«Que sabes tu? Não passas de um candeeiro de rua preso ao chão».
«Sei que os dias são cinzentos, que as cores do Outono se apagaram um pouco, que as noites ficaram pequenas e os dias gigantescos e vazios, sei que não tens aberto a tua janela e que adias para depois as coisas que desejas, ate os desejos fúteis, e isso desgasta-te e entristece-te e apaga em ti as cores que és. Estás longe.»
«Como é que um candeeiro de rua sabe tanta coisa?»
«Os candeeiros como eu iluminam as noites escuras de muita gente que se tenta encontrar a si mesma e ao mundo; até parece que por vezes largam a mão de si mesmos e se perdem nas ruas, como as crianças travessas que se julgam capazes de tudo sozinhas. No final do dia, quando anoitece, penduram-se como trapos velhos das janelas e conversam consigo e com os seus demónios, tentando assim compreender-se, e até quem sabe, encontrarem-se no escuro.».
«Eu quero encontrar-me».
Ela suspira longamente e deixa-se afogar no silêncio da noite. Alguns segundos depois chora compulsivamente como uma criança que se perdeu e não sabe como voltar para casa. Chora solta e só, chora porque não precisa de explicar a ninguém porque chora.
«Sabes, entrega-te às coisas, não coloques metas a ti e à vida, és maior que isso. Isto ensinou-me um velho que costumava passear por aqui de madrugada, dizia ele que o mundo é mais bonito quando as pessoas sonham; segundo ele viver é esticar os braços e deixares-te ir.»
Ela sorriu-lhe, e ele, com o seu ar de candeeiro de rua, retribuiu-lhe com um ar terno.
«Eu quero muito não me afundar nas coisas vazias. E tenho guardado num baú os desejos pequenos como horas no café de sempre e a demanda louca aos correios… até os livros me sabem bem, as pessoas na rua quando passo no metro, as pessoas no metro que espreitam as pessoas na rua; o carteiro que toca sempre que a carta é grande de mais para colocar na caixa do correio, o senhor que apanha cartão na rua e o transporta num carrinho azul; o senhor que passeia o seu cão preso por um fio… saudades dos varredores que conversam pausadamente, saudades da livraria de sempre. Tenho saudades de mim», e sorriu; debruçou-se e sussurrou-lhe:
«Estas aí dentro».
E ficaram assim, a contar histórias sobre teias de aranha e cadernos de argolas ate que amanheceu.


(a Rute, em 2006)

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