De uma forma decidida e inequívoca ela disse-lhe:
- Quero fazer amor contigo.
A frase, assim abandonada, deixou-o estupefacto, vacilante e trémulo. Pareceu-lhe um pedregulho enorme que se despenhava do céu e se desfazia estrondosamente. Sentiu-se como se todas as vestes, todos os véus se evaporassem... Adão à procura das inúteis folhas de figueira. As palavras haviam-se quedado numa mudez de prudência. Mais parecia que o rapaz havia perdido a voz. Talvez receasse a traição de dizer o que não queria dizer ao soltar cada palavra cortada, entoada, silenciada, comprimida.
De olhos no chão, ele deixou tombar um pesado silêncio. Se os cabelos chegavam para lhe cobrir as letras do rosto reclinado, também desenhavam uma oculta mensagem. Estáticos, permaneceram longos momentos. Ela supôs que o sol se apagara e que a noite ocultaria os gestos traiçoeiros da nudez que queria, e não queria, esconder.
A trémula vacilação de um momento emitiu o significante indiscreto que despiu o seu desejo. Ele bem sabia que algo, quer falasse, quer se calasse, havia de saltar de cima, de baixo, ou de dentro da letra ou do silêncio; o secreto significante do seu desejo escaparia ao controle decidido dos seus actos e diria o indizível do seu mais íntimo. Ingenuamente, ainda pensou que o seu corpo se transformaria numa estátua de sal, mas mesmo assim, o escultor perspicaz arrancou, daquelas estáticas vestes, a nudez de um corpo atraiçoado. Era o amor que medrosamente respondia ao desejo despertado pelo apelo dirigido daquela forma tão sem jeito.
Estátua de sal traída. Rapaz de olhos no chão. Cabelos descuidadamente pendidos sobre a face. Estátua de sal que ao escultor exímio deixavam evidentes as mais recônditas curvas de um corpo vacilante.
Os segundos vomitavam a duração de um tempo eterno. As palavras de desejo em forma de gesto, de corpo e de silêncio enunciavam, por entre montanhas de ambiguidades, a certeza inequívoca da sua resposta. A memória panorâmica de um instante arrebatou a ardente nudez de uma verdade espraiada ao longo de um tempo de longa espera. A rapariga olhou-o nos olhos sem se demover, confiante nas suas palavras, mas já sem esperança numa resposta. Por fim, deixou-se cair, abandonada e mole, sobre o sofá verde garrafa. Uma mão suave e terna percorreu-lhe levemente os cabelos. Ainda mais suavemente, tocou-lhe o queixo pendido como que a sugerir-lhe que levantasse o rosto mergulhado naquele infinito de antecipação.
Olhos nos olhos, num indizível silêncio, as palavras adormeceram.
Serenamente, a sua mão de ninfa passeou-se pela cabeça do companheiro de viagem, puxou-o delicadamente para lhe lembrar que também tinha boca e lábios, embora silênciados naquela envolvencia mítica. Aquela estranha viagem agarrou-os para a volúpia da entrega. Longos tempos permaneceram iludidos e extasiados com a paixão de quererem a impossibilidade de serem UM.
A rapariga acordou espavorida. O sonho ainda percorria o seu corpo de memórias e arrepios. Levantou-se, não queria perder aquela sensação de presença recente ausente. Olhou pela janela e a lua ia já alta. Repetiu a frase para si e sorrindo ajeitou as mantas da cama, era hora de voltar a adormecer.
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