Sou pobre. Sou tão pobre, que tenho pena de mim por ter tantos sonhos.

Estou presa entre duas linhas que me impedem de escrever. Como se  as linhas do papel me prendessem os braços. Os braços são a boca e eu não pudesse dizer nada. O tormento de estar fechada dentro da minha cabeça é uma tortura. Há que libertar tudo. Há que fugir desta loucura. Há que vomitar para fora o veneno ingerido ao longo dos anos, quebrar os pulsos em espasmos violentos de agonias reprimidas, chorar com as pontas dos dedos, deixar escorrer a verdade disfarçada em palavras bonitas e histórias engraçadas. Mãe, gostavas muito de mim. Pai, querias muito ter uma filha. (O caçador que a leve para a serra e que a mate como os outros coelhos, com um tiro na testa.)
E assim foi que eu cresci, a querer ser menina para sempre, para que nenhum homem me passasse a mão pelo pêlo nem pelo coração. Homens que amam quando convém, e as mulheres com as suas sopas doentias e as suas paixões por homens que nunca as vão amar de volta. Mas depois há os bailes e vai tudo por água abaixo, especialmente o coração.
O frio nos ossos ainda o recordo bem. O cheiro a lareira no corpo, na carne, na alma, como uma marca de nascimento - esta é do campo. Sou do campo e dos espaço, eu sei lá de onde sou.
Sou do campo, sou das árvores, sou cabrita. Sou? Não sei porque me têm em casa então! Eu devia era andar na serra com o avô José. Como é que fiquei tão partida? Como é que a rapariga ficou com o coração partido em tantos bocados? Não foi da pancada pois nem para isso tinham tempo.
Era livre como um pássaro, o importante era que comece a horas, sem incomodar ninguém e em silêncio. Graças a isso, como sempre com a boca fechada e nem consigo comer de outra maneira. De resto pergunto-me: porque não me mataram a mim também naquela tarde em que deram um tiro ao cão? É o homem assim tão cruel ao ponto de me ter poupado? Porquê? O tormento de estar fechada dentro de mim mesma é a maior tortura.

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