Matando memórias com tinta azul

O carro era preto e muito antigo. O pai sempre tinha tido aquele gosto por carros velhos. Talvez gostasse das coisas assim, naquele estado, maltratadas durante muitos anos e fechadas numa garagem sombria, daquelas que deixam apenas espreitar alguns raios de sol para nos dar a sensação de "qualquer coisa guardada".
A viagem era cheia de sons, eu queria imaginar que não eram do carro a desfazer-se, mas sim sons da paisagem que nos rodeava, como se todas as coisas tivessem uma música própria. O rádio, raramente apanhava o que quer que fosse, mas acho que não queríamos apanhar nada, aquele ruido de fundo era óptimo. O ponteiro das velocidades não funcionava, para variar, era sempre assim, em qualquer viagem uma avaria surpresa. O pai tinha-o desligado porque era barulhento e incomodava com aquelas velocidades descontroladas! Rimos daquilo.
Agora não tínhamos limite. O limite éramos nós.
Eu ia no banco de trás com o cinto mal colocado, demasiado grande para mim, ou eu demasiado pequena para ele. À minha frente, ele deixava a sua mão mergulhar no vento que gelava os braços, e tentava apanha-lo, agarra-lo naqueles momentos em que parece uma bola que enche a mão.
O vento. Lembro-me de fazer aquilo muitas vezes, mas naquele dia não estava com vontade, estava muito frio, devia ser Dezembro. As viagens de carro que fazia com o pai eram os momentos em que me sentia mais próxima dele, ainda que não disséssemos nada. E eu tinha as minhas teorias sobre tudo quando era pequena. Teorizava sobre o tamanho dos meus olhos, num daqueles momentos que todos temos por vezes, e que guardamos por acharmos engraçado, concluí, olhando o verde do rio Douro, que tenho olhos grandes por ser calada. Tenho olhos grandes porque falo com os olhos. Foi assim qualquer coisa do género. Então chegamos, sem me dar conta, ao lugar onde as montanhas têm nome. Achei aquilo delicioso. Apetecia-me trincar cada montanha, reter na boca o seu sabor a verde, a vida. A minha preferida chama-se Sandman. Não é muito grande. É até bastante discreta, podia jurar que a tive na mão, não era muito pesada. Pudesse eu falar destas coisas ao meu pai quando fazíamos essas viagens os dois e poderia contar-lhe o que eu achava sobre o maravilhoso patchwork que nos envolvia. Cores. Texturas. Formas.
Os caminhos que serpenteavam, de castanho e bege, o verde das montanhas como que a dizer que podemos chegar a elas. Como se fossem de facto necessários para as subirmos.
Não sei de quem foi a ideia de parar, mas naquele dia, em que não tínhamos velocímetro o pai decidiu parar na estrada que liga a Régua a S. João da Pesqueira, estávamos em pleno Dezembro e a paisagem era divinal. Sentá-mo-nos nas fragas mesmo de frente para o rio. Na outra margem, vimos a linha desafiadora que aguardava apaixonadamente a passagem do comboio. Na realidade às vezes penso, que bons momentos passámos em silêncio eu e tu, hein pai?

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