Eulália - o tormento da infância

Ir para casa. Mas qual casa? Onde? Porque motivo regressaria? Onde é a minha casa? Existe ainda no mesmo lugar? 

Quanto tempo já passou? Quanto? Foi tanto assim, que quando regresso já não reconheço os mesmos lugares, as mesmas pessoas? As pessoas mudam... outras morrem. A morte vai acumulando cadáveres à minha volta como badaladas de alarme. 
Eu sei. 
Eu sei, a infância, a infância já acabou. Mas há mistérios que nos atormentam.

A ideia romântica da eternidade termina no dia do nosso primeiro funeral. Não damos logo por isso, demora algum tempo - talvez até anos. A eternidade morre no nosso primeiro funeral. 
Quando a minha memória o permite e vasculho no passado, aquele tempo indefinido em que era uma menina da aldeia por entre montanhas, lembro-me daquele ramo de flores cor-de-laranja. Lembro-me da minha mãe à porta da escola, lembro-me do quão inocente era para não ter percebido que aquelas flores, assim que me foram passadas para as mãos, cheiravam a morto.

Recordo ter subido a rua a pé com a minha mãe ao lado, bem vestida e penteada, de não perceber porque é que naquele dia eu tinha autorização para sair mais cedo da escola, porque é que ia à missa, porque é que a minha mãe estava tão bem vestida e porque é que eu levava aquelas flores. A minha mãe não me explicou nada. Houve muitas coisas que ficaram por explicar e que foram ficando em prateleiras emocionais disfuncionais, para um dia mais tarde perceber.

A D. Eulália fazia milhos com sardinhas. Ela comia com prazer e eu fingia que comia. Gostava de a ver sarandar na cozinha. Sempre que passava as tardes em sua casa, ela mostrava-me todos os compartimentos da casa, como se fosse a primeira vez que a visitava. Eu era muito pequena, mas tinha uma certeza - eramos amigas. A D. Eulália era vizinha dos meus pais, vivia sozinha desde que se reformara e enviuvara, não tinha amigos, não era muito de sair de casa. Olhando para trás, consigo perceber que também eu era solitária, como tu Eulália. Talvez pensasses que era eu que te estava a fazer um favor em ocupar os teus dias fazendo-te companhia. Mas hoje, olhando para trás, percebo que foste tu que me fizeste companhia durante a minha infância. Eu amava-te. Aquela criança com olhos de bicho do mato amava-te e levou-te flores cor-de-laranja no dia do teu funeral. Naquele dia, eu não sabia o que era a morte, mas percebia o que era o silêncio e a solidão.
Depois do teu funeral a tua casa ficou fechada muitos anos. A tua família nunca mais visitou a nossa aldeia no Verão. Eu eventualmente cresci e parti, deixando ficar para trás as montanhas e a nossa pequena aldeia no meio delas. A tua casa foi vendida. Fiquei contente, alguém ia poder percorrer os compartimentos da casa e mostra-los aos amigos. Talvez voltem a fazer milhos com sardinhas. 

A ideia romântica da eternidade termina no dia do nosso primeiro funeral. Não damos logo por isso, demora algum tempo, talvez até anos. A eternidade morre no nosso primeiro funeral e o mais bizarro é que passamos o resto da vida a querer recuperar essa ilusão de que as coisas podem ser para sempre. A sensação de casa, o cheiro do Verão, as estrelas em Agosto, os amigos. Eu gostava de recuperar a fé em ramos de flor cor-de-laranja.

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