A arte de matar quem não vemos

Não é que tu tenhas deixado de existir. Eu é que te matei, conscientemente. Eu sabia o que fazia. Selecionei a dedo as memórias certas e passei um pano para que as coisas ficassem diferentes vistas do presente. Nada de ti, nada de noites sem dormir à tua espera; a esperança foi o mais difícil... mas essa também morreu quando percebeu que não havia futuro - e toda a gente sabe que a esperança só sobrevive se se alimentar do futuro.
Eu matei todas as coisas ligadas a ti, e consequentemente tu morreste também, porque de certa maneira tu eras feito de todas as coisas que me dilaceravam e desfiguravam aos pouquinhos - eras tu a fonte. Se hoje tenho uma visão cínica relativamente ao amor, foste tu quem plantou a semente.
Mas não vamos falar destas coisas agora que morreste, não de verdade só a fingir. É suposto falar só das coisas boas quando as pessoas morrem.
Esforço-me, e há apenas uma memória que ficou e não sucumbiu à limpeza geral - um carro em andamento, uma garrafa de Whisky e musica. És apenas uma silhueta contra o vidro. Estávamos felizes nesse dia, e fugíamos do tic-tac dos ponteiros do relógio como loucos. Tenho quase a certeza que esta memória é uma collage de todos os bons momentos que vivemos, não faz mal pois não?

Agora que morreste a fingir, penso no que será feito de ti? O que andas a fazer? Como é a tua vida?
Agora deves ser casado e ter filhos. Provavelmente até és tu quem abre a carta da eletricidade, quem empurra o carrinho do Carrefour...
Quando sonho com a tua morte sinto uma enorme culpa. Sinto como se de facto te tivesse morto, como se soubesse onde te deixei enterrado. Sinto que sou a única que sabe que morreste.

É melhor assim.
Se ficássemos juntos, arderíamos consumidos por um sentimento que ninguém queria.

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