o tiro certeiro
Meu filho, gritou a mãe ao vê-lo chegar com a camisa rasgada, sangrando.
Não se aflija minha mãe, disse-lhe o filho já nos seus braços, é só um coração.
exercício 1 de dia 25-2-08
Acordou mais cedo, naquela específica manhã de Inverno. Não sabia bem porque escolhera aquela manhã, era preciso, pensava. Vestiu-se com a calma do costume, não tinha pressa. Escolheu um chapéu ao acaso e saiu sem fechar a porta.
O dia estava fresco, fresco mas quente, os raios de sol despoletavam um pequeno confronto com aquela manhã de Inverno. Caminhou sem prestar especial atenção aos buracos acidentais da calçada, sem reparar nas montras encardidas, sem ver as velhinhas que alimentam os gatos das redondezas com deliciosos gaspachos que cozinham só para eles. Subiu a rua sem nunca abrandar o passo. Gostaria até de ter o vigor de antes nas pernas moles. Olhou o relógio. Estava quase na hora, receava que não chegasse a tempo.
Já conseguia ver a estação. Ainda tinha 5 min para descansar daquela euforia matinal quando chegou. Olhou à volta. Sim, era um bom dia aquele. Por cima dos edifícios pode ainda admirar o mar e alguns navios perdidos. O apito do comboio não tardou a fezer-se ouvir ao longe, estou a chegar, gritava.
Estava na hora, e se as suas pernas não lhe falhassem, como já havia acontecido noutras alturas, ia conseguir.
Naquele segundo, aquele que nunca ninguém consegue explicar bem, onde tudo parece acontecer lentamente, Maria Adelaide Ferreira, nascida em Linhares a 1942, atirava-se sorridente para a linha do comboio que fazia a ligação entre duas insignificantes cidades vizinhas. Naquele segundo, aquele que nunca ninguém explicou, Maria Adelaide realiza um sonho infantil - o de fazer com que as pessoas vivam um dia, um pouco diferente de tantos outros.
A 25 de Janeiro, 458 pessoas faltaram ao trabalho por causa da linha estar cortada.
Há quem diga que era louca.
Há quem diga que sorria.
Texto 1 de 1000 que irão ser escritos em diferentes fases da minha vida
Sentou-se no bar. As mãos tapando o rosto. A agonia de mais um dia naquelas mãos. O barman olha-a. Limpa um copo com paciência, pergunta-lhe o que vai ser e ela atira-lhe "cheio". Whisky. Ela não gosta de whisky, fá-la sentir agoniada. Bebe. Precisa sentir algo forte. Resumindo, precisa sentir qualquer coisa para além das suas duas mãos frias. O copo fica vazio. Pede outro. Não sabe porque está a beber. Acha que é por estar triste. Ela não se sente triste, na realidade seria bem mais fácil se ao menos pudesse saber com exactidão que raio de tumulto é aquele que atravessa. Olha à volta. Um par de velhos olha intrepidamente um jogo de futebol, trocam comentários sem nunca desviarem o olhar. De vez enquando o barman para de esfregar os copos com o seu farrapo para ficar a admirar o ecran fluorescente. Abana com a cabeça quando discorda com alguma coisa. "Mais um?" pergunta-lhe o homem ao ver o copo novamente vazio. Só a conta. Quer sair dali, precisa caminhar durante um bocado, caminhar destila-lhe o furor de mais um dia vazio de nadas absurdos e sem sentido. Sai do café, a pergunta que lhe aparece na cabeça irrita-a "esquerda ou direita?", está-se a foder se é para a esquerda ou direita. Acaba por ir para a direita, a rua é a descer e vai em direcção ao mar. Ao rio, já não se lembra do que é aquilo, que cidade é, qual o nome. Lembra-se vagamente de ter ouvido falar de outros lugares no mundo. Hoje? Hoje é só um dia para não ser, e na realidade, ela não acredita mais nisso.
I want you, I want you so bad
Encostado a uma esquina sombria, chupava uma beata apagada que encontrara no bolso. Esperava por ela desde as sete. De vez enquando espreitava os ponteiros do relógio, e estes insistiam em dizer-lhe que ela se atrasava uma vez mais. Ia espreitando para a rua da esquerda para ver se sentia o seu cheiro intenso a fruta silvestre, mas não sentia nada, e os nervos iam corroendo aquela alma empedernida de romântico incurável.
Sentou-se uma vez mais nos degraus da Rua Almirante Reis e acendeu de novo a beata morta. Pensava nela, nas coxas redondas, o seu decote redondo que mostrava sempre mais do que devia. Desejava-a.
De uma das janelas abertas, uma música incendiava-o ainda mais, como se isso fosse humanamente possível pensou.
"I want you, I want you so bad..."
histórias que nunca foram escritas ou inventadas - do livro que nunca vou escrever
O homem tremia de frio. A neve cobria-lhe os pés, estava ali à muitas horas, semi nu, com uns trapos rotos, de pé, encolhido como uma criança crescida. Das longas barbas pendiam pequenos cristais, o bafo da sua boca era o que ainda ia mantendo quente o seu nariz.
As mãos apertavam-se a si mesmas na esperança remota de se conseguirem aquecer, os joelhos fraquejavem, todo ele parecia desfalecer. Como foi ali parar, perguntava no forno da sua mente, como chegara ali? Quem o trouxera? Fora ele a pedir?
Um homem fardado aproxima-se, parece ser militar. Traz nas mãos uma caneca fumegante. «Do nosso Capitão», e entrega a chávena que cheira intensamente a café ao prisioneiro que ali passara a manhã inteira à espera do fuzilamento. Ah... lembrava-se, era prisioneiro, e deveria morrer nessa manhã, mas por motivos que ainda desconhecia, a sua morte havia sido adiada para a tarde desse mesmo dia. E ali ficara, de pé, junto ao muro, semi nú e no meio da neve, à espera. Agradece com um suave abano de cabeça e segura na chávena quente - uma fogueira. O militar afasta-se apertando o casaco. Ele fica a olhá-lo do seu pelouro de insignificância, não percebe destes amores.
Leva a chávena aos lábios e pensa que não poderá haver no mundo inteiro nada melhor que o cheiro, o ou o sabor a café... Tão puro, tão forte, inebriante. O calor dói-lhe nos ossos. Fecha os olhos e deixa-se adormecer nas lembranças que aquela chávena branca lhe aquece no coração. Lembra-se de quando era novo. A mãe fervendo água para o chá, a janela do seu quarto quando foi viver para Paris aos 19. O cheiro da primeira mulher. O calor da mão do seu grande amor. O barulho do mar a ser cortado por cascos de navios selvagens, os voos picados das gaivotas famintas. O barulho das rochas ao serem trepadas. O seu primeiro poema. Uma vida, pensou o velho olhando o céu leitoso que se despedia dele atirando-lhe gotas de gelo. Uma vida que se apagaria para sempre naquela tarde, um rascunho que desapareceria para todo o sempre com ele. Não é estranho que a vida se apague assim? Que sejamos a nossa própria biografia e que jamais a possamos partilhar? Quem me ouviria, pensou naquele delírio de café. Histórias de um homem senil que envelheceu como milhares de outros, que nada construiu que o mundo tivesse dado conta.
Bebe mais um golo e sorri para a árvore vazia que o observa do lado de lá do pátio. Talvez a vida seja aquilo, uma chávena de café minutos antes de se morrer para sempre.
Um velho feliz sorri agora, segura entre as mãos uma chávena de café vazia.
Quando os tiros se ouvem, no final desse dia, um navio atravessa o horizonte como numa despedida triste.
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