histórias que nunca foram escritas ou inventadas - do livro que nunca vou escrever

O homem tremia de frio. A neve cobria-lhe os pés, estava ali à muitas horas, semi nu, com uns trapos rotos, de pé, encolhido como uma criança crescida. Das longas barbas pendiam pequenos cristais, o bafo da sua boca era o que ainda ia mantendo quente o seu nariz. As mãos apertavam-se a si mesmas na esperança remota de se conseguirem aquecer, os joelhos fraquejavem, todo ele parecia desfalecer. Como foi ali parar, perguntava no forno da sua mente, como chegara ali? Quem o trouxera? Fora ele a pedir? Um homem fardado aproxima-se, parece ser militar. Traz nas mãos uma caneca fumegante. «Do nosso Capitão», e entrega a chávena que cheira intensamente a café ao prisioneiro que ali passara a manhã inteira à espera do fuzilamento. Ah... lembrava-se, era prisioneiro, e deveria morrer nessa manhã, mas por motivos que ainda desconhecia, a sua morte havia sido adiada para a tarde desse mesmo dia. E ali ficara, de pé, junto ao muro, semi e no meio da neve, à espera. Agradece com um suave abano de cabeça e segura na chávena quente - uma fogueira. O militar afasta-se apertando o casaco. Ele fica a olhá-lo do seu pelouro de insignificância, não percebe destes amores. Leva a chávena aos lábios e pensa que não poderá haver no mundo inteiro nada melhor que o cheiro, o ou o sabor a café... Tão puro, tão forte, inebriante. O calor dói-lhe nos ossos. Fecha os olhos e deixa-se adormecer nas lembranças que aquela chávena branca lhe aquece no coração. Lembra-se de quando era novo. A mãe fervendo água para o chá, a janela do seu quarto quando foi viver para Paris aos 19. O cheiro da primeira mulher. O calor da mão do seu grande amor. O barulho do mar a ser cortado por cascos de navios selvagens, os voos picados das gaivotas famintas. O barulho das rochas ao serem trepadas. O seu primeiro poema. Uma vida, pensou o velho olhando o céu leitoso que se despedia dele atirando-lhe gotas de gelo. Uma vida que se apagaria para sempre naquela tarde, um rascunho que desapareceria para todo o sempre com ele. Não é estranho que a vida se apague assim? Que sejamos a nossa própria biografia e que jamais a possamos partilhar? Quem me ouviria, pensou naquele delírio de café. Histórias de um homem senil que envelheceu como milhares de outros, que nada construiu que o mundo tivesse dado conta. Bebe mais um golo e sorri para a árvore vazia que o observa do lado de lá do pátio. Talvez a vida seja aquilo, uma chávena de café minutos antes de se morrer para sempre. Um velho feliz sorri agora, segura entre as mãos uma chávena de café vazia. Quando os tiros se ouvem, no final desse dia, um navio atravessa o horizonte como numa despedida triste.

1 comentário:

Anónimo disse...

Meu deus, que texto lindo. Ja fiz copy paste do teu blog para varias pessoas.
Por favor, pares=)