Gaiola de Ouro
A vida parecia-lhe, aos olhos dos seus oitenta anos, uma enorme cerimonia de preparação para a morte. Fechada dentro do seu pequeno apartamento punha-se a pensar, enquanto alimentava os pombos, naquilo que havia sido ao longo dessa viagem dos anos. Criança, menina, mulher e agora um trapo guardado no sótão para ninguém ver como está velho, o bicho o devora já. Fora sempre mulher de emoções fortes, bonita, amante da poesia e do fado, apaixonada pelo teatro e por bons livros. Apreciadora de boas conversas, bons cigarros e bons amigos. E agora, agora restavam as memórias dessa que tinha sido um dia, essa mulher mistério, essa mulher desejo que agora lhe parecia, aos olhos de uma velha de oitenta anos, uma dessas personagem de ficção que lera nos livros e que não existiu nunca. Lembrava-se das viagens, de bailar sem parar pela noite fora, os amores, as paixões proibidas, a emoção da descoberta, o choro, a tristeza das amizades desfeitas, os jantares, os vestidos e os chapéus, os homens. Desapareceu tudo. O mundo guarda agora apenas alguns retratos a preto e branco do tempo em que essa vida floresceu. De uma coisa ela tinha a certeza,era como uma conclusão final para esse caminhar em direcção ao abismo - aquilo a que se chama de vida - tudo era feito de amor. E abriu a mão num movimento de surpreendente graciosidade, deixando cair os últimos grãos de milho. Sentiu por momentos que toda ela rejuvenescia e a força dessa mulher de outrora a invadiu como uma visita de uma velha amiga. Adiaria o suicídio mais um dia. O sol estava tão bonito.
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