Esta mulher precisa de uma vida ou mata-se. Ela tem pensado muito nisso nos últimos dias, especialmente agora que a Câmara Municipal mandou envenenar os pombos e eles deixaram de vir pousar-lhe à janela. Os dias parecem-lhe mais longos, o sol ainda que luminoso não tem luz suficiente para chegar lá dentro, ao buraco que é a sua alma. Bem que queria que lha iluminassem, bem que tem rezado aos santinhos, mas nem eles parecem valer-lhe com tantos males que há no mundo, e agora com as cheias lá nas terras longínquas, pobrezinhos dos brazileiros, quem se importa com ela.
Já não lhe interessam os bordados, quem vai herdar as coisas que ela faz? Os livros, já não os pode ler, para pena sua, os olhos lacrimejantes impedem-na de viajar dentro da sua imaginação, resta a televisão que nada de alegre lhe traz, e para desgraças já lhe chega a sua condição de solteira solitária num bairro esquecido Lisboeta.
Acordou cedo, como sempre faz. A máquina do café labora já na sua única chávena matinal, como de costume, a torradeira, cansada de trabalhar sem parar há 18 anos, torra mais uma fatia de pão centeio. Enquanto isto, ela espreita através da janela da cozinha a sua rua ainda adormecida, solitária, despida de pessoas, e pensa no que fazer do seu próprio futuro. Não tem muito tempo, sabe disso, aos 78 anos sonha ainda em concretizar uma mão cheia de sonhos dos quais nunca ousou confessar nem ao padre. Tem esta missão no entanto - viver apaixonadamente para conseguir esses últimos momentos de prazer - ou morrer, porque para ela é o tudo ou o nada, e a vida sem fogo não lhe sabe a nada.
A torrada salta. O pequeno almoço está pronto, pensará nisso depois, agora irá ver os raios de sol acariciando a Ponte sobre o Tejo com beijos de bom dia como todos os dias faz para acordar Lisboa.
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