Júlia, Trás-os-Montes

Diziam que a mãe da Júlia era atrasada. Quando a via passar à porta de nossa casa fazia-me lembrar uma japonesinha - deslocava-se com um passo muito miudinho, as mãos sempre caidas ao pé das ancas e a vista no horizonte. A mãe da Júlia comprava-lhe muitas goluseimas e ia sempre busca-la à escola, ainda que a escola fosse apenas a 200 metros da sua casa. A Júlia vivia com a avó, o avô e a mãe. A casa onde moravam era um U feito de pedra rebola como as castanhas do tio Alberto. Do lado esquerdo as lojas das batatas e retrete, do lado direito a casa onde dormiam, e ao fundo a loja das cabras e o curral (aberto para a rua mas com telhado de colmo). As portas eram todas pintadas de azul céu, e quando nos apróximavamos da casa da Júlia ouvíamos os balidos das cabras e os seus sinos - a Júlia devia adormecer embalada pelas canções dos seus animais. Nos dias de escola, quando tinha que acordar muito cedo, o avô acendia a lareira para que se pudesse recompor antes de subir a ladeira até à escola. Ensonada e a abrir a boca dormitava de cabeça encostada à samarra do avô que num púcaro encardido fervia vinho doce com migas para dar à neta. A Júlia cresceu. Morreu o avô e quando já era mulher a avó. A mãe não percebeu bem dessas mudanças, vivia fechada dentro de si mesma há já alguns anos. A Júlia deixou de ter cabras, mas quando me recordo das parcas tardes em que nos foi permitido brincar naquele quinteiro virado para o curral, recordo esse som tão quente e familiar, como se também na minha infância eu tivesse tido um avô que me amasse.

Olga, Trás-os-Montes, Verão de 1995

No Verão comia iogurtes fora de prazo. Os primos eram sempre simpáticos e deixavam no frigorífico os excedentes lácteos, juntamente com uma sensação de vazio, sempre que acabavam a sua semana de férias no norte. Para passar os dias de férias sem se aperceber das horas, via televisão na cozinha, com a luz apagada, os filmes parsos que ali exibiam. Sacudia as migalhas do jantar no quintal depois das nove, ainda que a sua mão a advertisse que dessa forma as alminhas viriam comê-las e se perderiam no escuro para sempre. Dobrava a toalha a olhar as estrelas que iluminavam a noite e em silêncio, dentro do seu coração, pedia desejos a todas elas - alguma haveria de ser encantada no meio de tantas centenas. Passava as tardes nas escadas de acesso ao sótão onde lia livros e falava sozinha imitando as heroínas das telenovelas, a mãe rezava entre dentes e tricotava as toalhas de renda para o enxoval. Entretinha-se a fazer desenhos e cópias porque tinha saudades da escola. Cantava. Dançava na sala de estar com as cortinas fechadas quando o sol estava muito quente e quando a sensação de clausura aumentava. Lanchava com a mãe. a Televisão conversava por ambas. Sentia-se sozinha e longe. Havia apenas um momento do dia que a fazia sentir grande e lhe dava uma sensação de liberdade - o pôr do sol. Quando o sol se punha, empoleirada na janela do seu futuro quarto, perdia-se a adivinhar as cores que as nuvens vestiam. Traçava com o seu pequeno dedo indicador a linha recta do horizonte, linha essa que lhe dizia que para lá daquelas montanhas de pedra havia outro mundo, mais populado, mais alegre e dentro do prazo. Queria ser como o gato das botas para poder atravessar o muro do desconhecido e aventurar-se na vida.

"Untitled"

eu não gostava nada quando os artistas chamavam a qualquer coisa "untitled". achava estúpido não darem nome às coisas. ao que parece hoje em dia partilho dessa confusão geral - eu já não sei nada. seja o que for - eu não sei.

"ran ran ran" o caraças

Estou a atravessar uma crise de identidade. Dantes as certezas da vida eram mais claras, ser o Indiana Jones era tão possível quanto ser pediatra - hoje, ambas as coisas me parecem um absurdo. Estarei a ficar louca ou nada faz sentido? Hoje em dia em vez de sonhar com livros e com as férias sonha-se em ter dinheiro... tivesse eu morrido engolida pela onda do meu sonho e nada disto seria a mesma coisa. ("ran ran ran" sensação de felicidade em japonês - foi o que Etsuko disse)

mais um no meio da multidão

Já viste bem as horas que são? Repara bem nos ponteiros do relógio, não me parece que estejas a perceber a gravidade da situação. Pára tudo o que estás a fazer neste momento e vê a horas. Já! Repara bem no ponteiro dos minutos, sempre a andar ao mesmo ritmo. Já viste bem o dos segundos, tão pontual e organizado, nunca se engana - 1, 2, 3, 4, 5 segundos - constante, perpétuo. O tempo está a contar e tu estás aí, com as tuas meias, tão quentinhas, não é? Prontinho para ir dormir, a alma descansadinha, fizeste o melhor que podias ter feito com este domingo de merda, chuvoso, frio - um domingo onde até houve pessoas que morreram por causa do mau dia - dia de merda este - ainda por cima domingo. E pensas agora no teu dia - não penses como terá sido o dia das outras pessoas, concentra-te no teu dia, acordaste e que fizeste? Nada. Todas essas pequenas coisas em que te ocupaste o dia todo foram um passa-tempo idiota para esta hora chegar e puderes ir dormir com a cabecinha descansada a achar que viveste o melhor que podias ter vivido, e ainda por cima podes usar as tuas meias quentinhas, como te sabe bem não é? Mas não consegues dormir. Fechas os olhos e tens o peito pesado, a consciência pesa tanto que não consegues respirar. Tu sabes. Tu sabes que foi assim, há outras coisas que terias feito se... dá cabo desse "se", esse "se" não te deixa seguir em frente, e vão atirar-to à cara sempre que puderem, esses pseudo bem sucedidos que te querem por o pé em cima para ficarem um bocadinho mais altos. Não vales nada, nem sequer és membro das finanças, nem isso, nem sequer estás a pagar a pensão da tua avó. Sê pessoa, faz alguma coisa, sê diferente, não sejas mais um na multidão.

a um café de chorar

Já repararam como o silêncio invadiu os dias? Se ao menos aqui houvesse cafés como no Porto.

Tango

Ontem à noite estive num salão de baile onde se dançava o tango. Fiquei presa no detalhe das mãos que se tocam ao de leve, os rostos que olham para lá do visível, os corpos que absorvem a música e se deixam ir movendo os pés graciosamente. Surgiu dentro de mim a curiosidade.

já não se pode relaxar

Há uma praia algures onde eu encontro os meus problemas todos a apanhar sol. Sempre que lá vou para sair da minha rotina deparo-me com todos os problemas não resolvidos na minha praia privada a deleitar-se ao sol, espraiados e bronzeados. O que fazer para que eles deixem a minha praia paraíso? É minha. É só minha.

"Espuma dos dias" - próxima compra

olha olha, a caneta ainda escreve

Morro de inveja de mim. Inveja dos dias em que as coisas fluem e eu me deixo ir sem atrapalhar nada. Depois há estes dias de merda em que eu estrago tudo com dúvidas e perguntas. Devia estar calada e deixar as coisas como são, e estrago tudo.

Nereida

Desde pequena, naquele tempo antigo em que me cortaram as amarras, que sou barco sem rumo. O mar me leva e não sei para onde. Deixo-me embalar nos seus braços. Fecho os olhos e sinto na cara a carícia do sol, o abraço meigo do vento. Pequenos peixes beijam as pontas dos dedos, pássaros alimentam-me com bagas que trazem de terras longínquas. Passeio por esse mundo fora nos braços fortes desse mar que cuida de mim. A proa do meu barco é feita de uma madeira preciosa, nela floresce um pequena folha verde, a qual e cuido. E é nessa folha verde que a minha esperança renasce. Esperança que uma dia à terra ele me vá deixar.

Gaiola de Ouro

A vida parecia-lhe, aos olhos dos seus oitenta anos, uma enorme cerimonia de preparação para a morte. Fechada dentro do seu pequeno apartamento punha-se a pensar, enquanto alimentava os pombos, naquilo que havia sido ao longo dessa viagem dos anos. Criança, menina, mulher e agora um trapo guardado no sótão para ninguém ver como está velho, o bicho o devora já. Fora sempre mulher de emoções fortes, bonita, amante da poesia e do fado, apaixonada pelo teatro e por bons livros. Apreciadora de boas conversas, bons cigarros e bons amigos. E agora, agora restavam as memórias dessa que tinha sido um dia, essa mulher mistério, essa mulher desejo que agora lhe parecia, aos olhos de uma velha de oitenta anos, uma dessas personagem de ficção que lera nos livros e que não existiu nunca. Lembrava-se das viagens, de bailar sem parar pela noite fora, os amores, as paixões proibidas, a emoção da descoberta, o choro, a tristeza das amizades desfeitas, os jantares, os vestidos e os chapéus, os homens. Desapareceu tudo. O mundo guarda agora apenas alguns retratos a preto e branco do tempo em que essa vida floresceu. De uma coisa ela tinha a certeza,era como uma conclusão final para esse caminhar em direcção ao abismo - aquilo a que se chama de vida - tudo era feito de amor. E abriu a mão num movimento de surpreendente graciosidade, deixando cair os últimos grãos de milho. Sentiu por momentos que toda ela rejuvenescia e a força dessa mulher de outrora a invadiu como uma visita de uma velha amiga. Adiaria o suicídio mais um dia. O sol estava tão bonito.

Nota de autor

Eu sei. Eu sei de muitas coisas, acredita. Sou é de uma natureza calada e discreta, não faço muito barulho. Sou como os bichos pequenos e que ninguém nota. Sou como o gato que caminha entre os cristais mais preciosos sem nunca partir nada e sem nunca se fazer ouvir. Mas sei de muitas coisas, só não faço barulho. Eu aprendi com as pequenas coisas da vida, como as colheres que mexem o café, a ver como a vida se faz. E fui vivendo e experimentando o que me diziam as coisas do mundo que já existiam antes de mim. Eu aprendi muito com a minha avó que tanto gosta de coscuvilhar com as suas amigas de preto. Aprendi com a minha mãe que costurava numa teimosa máquina de costura enquanto cantava. Aprendi com os caracóis que apanhava no jardim. Aprendi com os difíceis degraus, os sonhos maus e os monstros de armário. Aprendi que nada se deve desperdiçar porque cada segundo é demasiado precioso.

soundtrack for the day - yoga mantra (depois ensino-te)

Ayôdhya vasi Rám Rám Rám
Dasharatánandana Rám (2x)
Páthita pávana jánakí jívana
Sítá môhana Rám (2x)

notas soltas

Talvez penses que sou uma idiota. Sim, tens razão. Tenho medo.

recado escrito com giz na parede

da próxima vez que te vir vou abraçar-te até ficares corado

Peter Pan

Quero fumar uns cigarros noite dentro e esvaziar garrafas de vinho verde ao som de Vampire Weekend. Dançar. Dançar até os pés me doerem e eu ter que tirar os sapatos. Fazer figuras tristes e não me importar com elas. Não me importar com nada e abraçar os amigos que não vejo há 6 meses. Serão eles ainda meus amigos? Cantar e abrir as janelas. Transformar todas as janelas em janelas mágicas. Rir, rir às gargalhadas até não conseguir respirar. Essas coisas que qualquer Peter Pan faria numa noite destas... A esses amigos que deixei na terra do nunca um beijo de boa noite.

O mundo é teu!

"Obrigado. Mas hoje estou demasiado deprimida para fazer o que quer que seja com ele."

fragmentos

A Mariana não tem amigos. Já não se lembra como se fazem amigos, essas coisas esquecem-se com o tempo. Os objectos vão ganhando nomes e importância e aquele spot publicitário do Ikea (o do candeeiro vermelho) faz sentido para a Mariana. Agora os dias resumem-se a longos passeios no jardim, resumem-se a um grande vácuo. De vez enquando ela tem umas memórias dessas manchas do passado, pessoas com quem ria e vivia e que se evaporaram com o passar dos anos... os anos passam e ninguém dá por eles. Um dia a Mariana vai acordar e, sem se ter apercebido vai ter 90 anos. Vai sorrir para o seu gato persa e sentar-se na varanda olhando o rio a morrer no mar.

Loop

O tempo está a tentar dizer-me qualquer coisa. O espelho mostra também essa mensagem do tempo. Um rosto com menos alegria. Para onde foi? O que aconteceu?

O que é que queres? Acho que já não nos voltamos a ver... esta confusão.

Consegues ouvir isto? Estou longe agora e tu precisas de ouvir isto. Acho que é quarta à noite... que confusão. O sol já se pôs, e dia e noite eu sonho, sonho com rodas que giram sem parar, é impossível eu sei, mas eu queria que o nascer do sol fosse já para poder fugir pela auto-estrada em direcção ao infinito... que confusão, que confusão.